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terça-feira, 3 de março de 2015

Dois importantes precedentes judicias salvaram a inusitada semana






Flagrado, utilizando literalmente os “autos do processo”, o magistrado carioca que neste momento está em evidência de norte a sul do Brasil, bem revela como as nossas instituições, expostas pelos meios de informação, têm sido muito criticadas pela sociedade contemporânea.

Atitudes reprováveis isoladas, embora frequentes, comprometem a confiança que os cidadãos sempre depositaram no Poder Judiciário.

Sob o prisma jurisdicional, é certo, que a atual concepção de “processo justo” não tolera qualquer resquício de discricionariedade, até porque, longe de ser simplesmente “la bouche de la loi”, o juiz proativo de época moderna deve estar comprometido e zelar, tanto quanto possível, pela observância, assegurada aos litigantes, do devido processo legal

Não obstante, em nossa experiência jurídica, esquecendo completamente de que a celeridade deve servir às partes e não ao Estado, os tribunais, em várias situações, extrapolam as garantias processuais, passando a legislar em detrimento do direito material do litigante, como ocorre, por exemplo, no âmbito da famigerada jurisprudência defensiva.

Para salvar a semana, observo que dois importantes e recentes julgados foram estampados, na íntegra, no último boletim (n. 2.929) da operosa Associação dos Advogados de São Paulo, que bem demonstram a sensibilidade e os atributos que devem revestir, no Elogio de Calamandrei, “o talento do bom juiz”.

O primeiro deles, da 20ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP, no julgamento do Agravo de Instrumento n. 2092111-81.2014.8.26.0000, de relatoria do Desembargador Alberto Gosson, desproveu o recurso com fundamento na prudência e razoabilidade. Vale a transcrição parcial da precisa ratio decidendi: “A inviolabilidade do sigilo bancário é direito de extração constitucional (CF, art. 5º, incisos XII e X), que somente admite relativização em hipóteses excepcionais arroladas pela Lei Complementar n. 105/2001 e pela jurisprudência. Em interpretação da citada lei, como regra, não se permite o afastamento do sigilo em processos cíveis, mas somente para fins de investigação criminal ou instrução processual penal... E, com a mesma orientação, precedentes do STJ e do STF... A espécie, no entanto, até mesmo por tratar de matéria cível, não se amolda a nenhuma das hipóteses previstas na Lei Complementar n. 101/2005. No mais, deve ser levado em conta o princípio da ‘menor onerosidade da execução’, do qual se pode extrair que, mesmo admitida a quebra do sigilo em processo de execução, tal medida só poderia ser adotada em último caso, como ultima ratio, de maneira absolutamente subsidiária a todas as demais ferramentas postas à disposição do juiz para propiciar a satisfação da prestação. Não bastasse, a pessoa cuja conta bancária se requer a violação não é nem mesmo devedora da exequente, não constando da nota promissória nem integrando o polo passivo do processo. Ademais, não é razoável restringir um direito fundamental de primeira geração (dimensão), com base simplesmente em suposições de conluio, desprovidas de qualquer indício de prova, entre o devedor e terceiro, para obstaculizar a execução”.

Já o outro aresto, proferido no Recurso Especial n. 1.443.992-RJ, pela 1ª Turma do STJ, cujo voto condutor é da lavra do Ministro Ari Pargendler, recentemente aposentado, enfrentou questão processual emergente do polêmico art. 285-A do CPC, ensejando o provimento do recurso.

Recorde-se que esta regra legal (reproduzida no art. 332 do novo CPC: “improcedência liminar do pedido”) autoriza o juiz a proferir sentença de improcedência do pedido, quando, no mesmo juízo, o mérito, exclusivamente de direito, já tiver sido apreciado em outra demanda. Ocorre que nem sempre se torna fácil traçar nítida distinção entre matéria de direito e matéria fato, circunstância que reclama redobrada atenção do julgador. Nesse particular, o açodamento do juiz pode ferir a garantia da ampla defesa.

Foi exatamente o que sucedeu no precedente acima mencionado, constando da fundamentação do acórdão o seguinte trecho: “O pedido inicial, qual seja o de que o recorrente deixou de receber parcelas devidas a título de ‘quintos’ e ‘décimos’, tem dois pressupostos: - um, o de que o Conselho da Justiça Federal reconheceu-lhe o direito de incorporar à sua remuneração as aludidas vantagens funcionais; e – outro, o de que algumas das respectivas parcelas deixaram de lhe ser pagas. À evidência, o juiz federal substituto não poderia ter imprimido ao procedimento a tramitação do processo sem contraditório regular. Se é verdade que, tratando-se de servidora da Justiça Federal lotada na 2ª Região, o magistrado e o tribunal a quo poderiam ter conhecimento dos fatos alegados nesse âmbito, não lhes era dado presumir o que diz respeito à Seção Judiciária do Estado do Amazonas. A falta de pagamento de parcelas atrasadas constitui, portanto, fato que precisa ser provado”.

Desse modo, a turma julgadora, por unanimidade, conheceu do recurso especial e lhe deu provimento para anular o processo desde a sentença, “dando ensejo ao contraditório regular”.

Não é preciso enfatizar que as teses desenvolvidas em ambos os julgados são da maior relevância, tanto mais quanto se tenha presente o significado dos princípios constitucionais que exornam a garantia do devido processo legal, necessariamente assecuratória da plenitude de defesa.

Viceja destarte a instrumentalidade do processo como vetor institucionalizado em prol da efetivação do direito material.

Valeu a semana!


José Rogério Cruz e Tucci é advogado, diretor e professor titular da Faculdade de Direito da USP e ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo.



Revista Consultor Jurídico, 3 de março de 2015, 10h22

sexta-feira, 7 de março de 2014

O DIREITO COMPARADO NA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL



O direito comparado na jurisdição constitucional

The comparative law in the constitutional adjudication


Gustavo Vitorino Cardoso

Mestrando em direito constitucional na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra


RESUMO

Este estudo aborda o crescente uso do direito comparado na racionalidade das decisões dos tribunais constitucionais. Tema extremamente interessante e atual, a aproximação do direito constitucional ao direito comparado é ilustrada a partir de casos julgados em Portugal, Estados Unidos e África do Sul e que receberam atenção especial da doutrina, destacando-se, nomeadamente, os contornos históricos e jurídicos caracterizadores desses ordenamentos jurídicos. O primeiro objetivo perfaz a verificação do alinhamento do Supremo Tribunal Federal à tendência comparativa, o que é feito mediante a análise materialmente direcionada da sua jurisprudência colhida no sítio oficial. A segunda etapa tem como escopo uma explicação possível para o problema intrínseco à interpretação/concretização de regras e princípios constitucionais, lançada na fundamentação de uma decisão com base em elementos apurados em outra ordem jurídica, tarefa essa que é levada a efeito com apoio na caracterização do denominado estado constitucional. Todas as etapas cumprem a função mais geral de indagação acerca do papel que a comparação de direitos tem alcançado no constitucionalismo do presente.

Palavras-chave: direito constitucional; direito comparado; Estado constitucional; tribunais constitucionais; Supremo Tribunal Federal.


Fonte: Scielo

sábado, 30 de junho de 2012

INTERPRETAÇÃO DA DECISÃO JURÍDICA: O QUE FAZER COM NOSSO CÉREBRO?

Interpretação e decisão jurídica: o que fazer com nosso cérebro?

Atahualpa Fernandez
Artigo publicado na Revista Âmbito Jurídico

Dentro das teorias jurídicas da interpretação e tomada de decisão que nos rodeiam, só há duas opções: ou adotas os ideais dominantes acerca da racionalidade do discurso jurídico e te passas o dia controlando tua atitude e revisando tuas percepções...ou te passas ao lado escuro, abrindo as portas da cova para deixar que saiam os fantasmas da irracionalidade ou as bestas do decisionismo.
Por excepcional que seja o cérebro humano, é uma consequência clara, um produto, da evolução por seleção natural, com todas as limitações que isso implica. E o mundo em que vivemos é uma consequência do “constructo” que faz o cérebro, isto é, das idéias que constrói através de mecanismos neuronais que se ativam com a realidade sensorial e a cultura em que se vive, processo este que está dirigido pelos códigos genéticos de funcionamento herdados nessa mesma evolução biológica.
Com estas duas premissas se alcança a conclusão inequívoca de que tudo quanto percebe ou concebe o ser humano o faz através do trabalho de seu próprio cérebro. Consequente com isso, cabe pouca dúvida de que o direito e a experiência jurídica, qualquer concepção ou interpretação, teoria ou discurso jurídico, mesmo sendo uma conduta única e diferente a que desenvolvem todos os demais seres vivos não humanos que habitam a terra, é uma atividade cerebral como qualquer outra atividade ou experiência intelectual humana, seja esta a criação de uma obra literária, uma experiência ou concepção religiosa, uma bela escultura ou um excelso juízo moral. Tudo tem seu assento último e definitivo no cérebro e seu funcionamento.
Os dados que aporta a neurociência, seguramente os mais revolucionários acerca do que conhecemos hoje sobre a natureza humana, parece confirmar hoje tal asserto. De fato, a neurociência parte de uma premissa básica e iniludível: que tudo quanto existe no mundo humano, objetivo ou subjetivo, é concebido através do cérebro, órgão por meio do qual se sente, pensa e executa a conduta. Esta afirmação surpreende já a muito pouca gente porque todo mundo sabe e tem por certo que sem cérebro não se sente nem se pensa e nem se realiza conduta alguma. Mas ainda assim, poucos sabem, são conscientes, que os códigos de funcionamento que tem o cérebro são os responsáveis últimos de nossa concepção acerca de tudo o que nos rodeia, incluídos os demais e nós mesmos. Pouca dúvida alberga já a idéia da unidade do ser humano, isto é, o fato de que a atividade mental é um estado funcional do cérebro, de que tudo o que passa na mente se deve a (ou ao menos depende da) atividade do cérebro: um “continuum” mente-cérebro que implica precisamente que não há uma separação radical entre o mental e o neural, cérebro e mente ou cérebro e espírito (Llinás e Churchland, 2006).
A neurociência tende a explicar, aproveitando todo conhecimento transversal possível (outras disciplinas), o funcionamento do cérebro e o produto desse funcionamento que são os processos mentais. Aproxima-nos à compreensão de como se construíram e que circuitos neuronais estão envolvidos e participam na elaboração do mundo subjetivo humano, seus processos de raciocínio, interpretação, sentimento, criatividade e conhecimento, e, também, as decisões, os juízos e o pensamento ético, moral e jurídico. E embora seja certo que a neurociência atual ainda dista muito de explicar todos esses fenômenos e que nos falta um largo caminho por percorrer, não menos correta é a constatação de que, passo a passo, o avanço imparável da pesquisa neurocientífica parece trazer consigo a derribo de velhas idéias, como as que se utilizaram antes ao construir um mundo prenhado de ignorância e especulações.
Pois bem, se admitimos como corretas e legítimas tais evidências, não resulta difícil nem irrazoável inferir que as atuais teorias acerca da hermenêutica, da interpretação e da argumentação jurídica parecem ser, hoje, a mais flagrante e patética expressão de um estridente anacronismo, pelo simples fato de que partem de um puro e absoluto desconhecimento do funcionamento do cérebro humano. Assim que a pergunta sobre “o que fazer com nosso cérebro?” é uma pergunta para todos, e que pretende fazer surgir em todos nós o sentido da necessidade e urgência de um novo modelo hermenêutico, já agora comprometido com uma postura mais empírica e respeitosa com os métodos científicos atuais, acusadamente no que se refere ao problema da realização do direito.
Por acaso não é o cérebro o assento físico de nossas experiências interpretativas, quer dizer, da sensação “real” de um mero jogo mental de idéias e especulações? Por que, se está claro que não pode haver, em adiante, aproximação filosófica, ética, jurídica, etc., que não passe por uma análise detalhada do fenômeno neuronal, temos, não obstante, insistido por seguir um caminho contrário a uma integração interdisciplinar necessária que, a toda evidência, seguramente contribuirá mais para a compreensão dos múltiplos fatores e influências, inatas e adquiridas, que condicionam nosso processo de decisão? Por que enquanto a atividade do sistema nervoso central, tal como atualmente aparece à luz dos descobrimentos científicos, propõe sem lugar a dúvidas à consideração e reflexão uma idéia completamente nova da tarefa interpretativa, nos recusamos tenaz e taxativamente a rechaçar a sensação de que com relação ao direito nada se transforma?
Quando pensamos no cérebro (aliás, com o próprio cérebro, e que não foi modelado pela evolução para entender-se a si mesmo) vemos que nosso conhecimento do mundo e nossas ações derivam de nossas percepções e que nossas percepções (assim como nossa consciência) são construídas por mecanismos neuronais (redes) adquiridos e desenhados ao longo de nossa evolução. Investigar o que é o homem e como atua significa, de alguma maneira, saber como funciona o cérebro, como intervém na elaboração de nossos pensamentos, como opera nas ações humanas, na criatividade, na racionalidade e no surgimento de nossos juízos de valor, sentimentos e emoções, já que é precisamente neste órgão donde reside o substrato último de toda experiência humana, incluída a própria experiência hermenêutica.
E se nos situamos no âmbito propriamente do jurídico, nada disso deveria surpreender, pois não parece definitivamente razoável supor que a tarefa interpretativa seja concebida como extracraneal, enquanto a cognição e a emoção (produtoras da subjetividade) não o são. São produtos de nossa maquinaria cerebral, tanto como são produtos de nosso entorno cultural. Dito de modo mais simples: se interpreta com o cérebro.
Assim que a interpretação jurídica, tal como a conhecemos, é uma atividade levada a cabo por seres (cérebros) humanos com suas próprias necessidades, crenças, visões (prévias) do mundo, opiniões, amores, ódios, desejos, preferências, circunstâncias, problemas..., que, de uma forma ou outra, incidem e condicionam o resultado de suas interpretações, destinadas a transmitir suas mensagens a um público específico em uma época e um lugar determinados. Cada um dos intérpretes do direito é um ser humano, cada um deles tem algo diferente a comunicar, cada um intenta transmitir a sua visão de mundo (que há herdado ou adquirido) em suas próprias palavras. Cada um deles, de certo modo, muda, altera ou transforma os textos que interpreta.
Quem, por alguma razão, não entenda desse modo o processo de interpretação e aplicação do direito acaba por não admitir que cada intérprete diz o que quer dizer; quem faz isso não lê o que cada autor escreve com o propósito de entender sua mensagem. De fato, quem faz isso não somente se nega a reconhecer que cada intérprete é diferente senão que também se recusa a entender que não é adequado pensar que todo intérprete pretenda dizer sempre o mesmo. Pensar tal coisa é tão injusto como supor que o que queremos dizer neste artigo sobre a interpretação jurídica há de ser o mesmo que diz qualquer outro autor que se ocupa deste tema. E isso pela simples razão de que ninguém pode viver sua realidade (nem, por certo, interpretá-la) sem o concurso irrenunciável de sua atividade mental: detrás de dois cérebros distintos escondem-se mundos e formas completamente diferentes de conceber e de sentir a realidade.
Vejamos um exemplo. O sentimento de injustiça o constrói o cérebro de cada um e de acordo com sua própria individualidade; como cada cérebro é diferente a todos os demais, esse sentimento é pessoal e intransferível. Isso são os qualia, os matizes emocionais que cada ser humano acrescenta à percepção consciente (ou inconsciente) da realidade do mundo e que diferem dos matizes que vê e sente qualquer outro. Esses matizes são únicos porque são produzidos pelo cérebro que guarda todas as vivências genuínas em cada ser humano ao longo de toda a vida. A característica dessas experiências é que não são experimentadas por nenhum outro ser humano. E com elas se constrói a individualidade, a finura das percepções, quer dizer, a diferença com os demais e nossa nunca repetida forma de ver e interpretar o mundo[1].
E como o discurso jurídico é o resultado de um pensamento de tipo hermenêutico, pois consiste em interpretações de materiais jurídicos, parece razoável admitir que o realmente importante, no que diz respeito ao problema da atividade interpretativa, é concentrar-se nas próprias cabeças dos sujeitos-intérpretes e perguntar-se que fatores condicionam suas decisões e que influências, e como, podem ter os métodos jurídicos sobre o que passa em suas mentes. Desde logo, corresponde descartar, como sabemos, que seja factível umas soluções puramente racionais ou razoáveis, e que isso possa alcançar pela via de certos “métodos-receitas”. Não pode haver tais ordens de respostas às questões jurídicas em geral. Não somente porque semelhante receita não as há descoberto ainda ninguém – e nem é provável que se chegue a elaborar-, senão porque, ainda que alguém as apresentasse nada seria menos seguro que lograr, na prática, fazê-las aplicar tal qual pelos sujeitos-intérpretes, em casos sobre os quais os operadores do direito contendem na vida real (Haba, 2006).
Recordemos que a “consciência” (“cabeça”) do intérprete, com a que necessitamos contar, não se compõe somente do “módulo” conhecimento, senão também do “módulo” emotivo-afetivo: sentimentos, intuições, experiências pessoais, memória, ideologias... Os métodos, sejam quais forem, se dirigem às faculdades racionais dos homens. Mas por mais corretos que uns métodos sejam (suponhamos que sim) desde o ponto de vista intelectual, isto não basta para presumir ou decidir que serão adequados àqueles que estão chamados a aplicar esses métodos. Para que determinados métodos sejam seguidos, tem que dar-se uma das duas condições seguintes: i) ou que o conhecimento e a prática metódicos sirvam também para promover determinados fins fundeados na vida emocional do sujeito em questão, e que este seja consciente disso; ii) ou que, em todo caso, esses métodos não se oponham a ditos fins se não é para favorecer outros que o próprio sujeito considere igualmente importantes. Em qualquer dos dois casos, a vida emocional do intérprete dispõe, em última instância, de uma espécie de “veto” sobre o pensamento metódico[2].
Não há nenhuma filosofia, dogmática ou metodologia jurídica, por perfeita que seja, capaz de eliminar tal condicionamento. É assim, queira-se ou não, simplesmente pelo dado mais trivial no que se refere ao pensamento jurídico na prática: os operadores do direito não são menos pessoas de carne e osso que qualquer outro ser humano. Sobre esta verdade, que não pode ser mais elementar, passa simplesmente por encima a maneira corrente com que as questões do discurso jurídico são propostas por parte de sua doutrina profissional e/ou “oficial”. Com efeito, esta se refere – ou, mais habitualmente, nem sequer se refere – aos protagonistas do pensamento jurídico, especialmente aos juízes, de uma maneira tal “como se estes fossem pessoas distintas aos condutores de taxi, fabricantes ou professores...”(Simon, 1985).
As emoções, as intuições morais, as memórias, as percepções, as sensações e as experiências pessoais de cada indivíduo não são vistas como “cegas oleadas de afeto” senão como peças que outorgam “razões para interpretar”, e que servem como elementos condicionantes da interpretação e aplicação do direito. De fato, é precisamente a partir da evidência de que nossos pensamentos e avaliações têm nexo com nossas emoções que já não mais resulta aceitável deixá-las à margem da fronteira das modernas teorias hermenêuticas, de interpretação e de argumentação jurídica - independentemente do problema de saber se os juízos são "constituidos" ou "impulsionados " pela emoção (Greene, 2008; Haidt, 2008) ou simplesmente se correlacionam com a emoção que se vai gerando por cálculos inconscientes (Huebner et al. 2008). Hoje, o que se deve tratar de fazer é incorporar no âmbito do conhecimento jurídico uma reflexão e tomada de posição mais esclarecida de cara com as pesquisas levadas a cabo pelas ciências cognitivas e pela neurociência.
O problema é que a teoria jurídica insiste em ignorar a personalidade do intérprete autorizado porque seus defensores afirmam que tudo o que há que saber pode deduzir-se a partir do “manifesto” ponto de vista de um terceiro imparcial e “neutro”. As turvas regiões da primeira pessoa resultam enganosa, em especial no que se refere a forma como se comportam os magistrados quando, apoiados nesse leitmotiv do discurso racional e objetivo, “fazem justiça” e invocam “compulsión de ´la ley´ para justificar sus decisiones” (Kennedy, 2010). E isso sem falar que, em geral, os juízes não somente não toleram que se lhes imputem causas ideológicas ou psicológicas senão que reagem com indignação ante elas, negando-as em termos suspeitosamente apaixonados, como se tratasse de uma agressão a sua honestidade profissional.
No discurso jurídico, a evidência de motivações pessoais quase nunca é manifesta, no sentido de que implique uma admissão de intenção. Nas sentenças judiciais, por exemplo, os juízes sempre “declaram”, explícita ou implicitamente, que o resultado - o desenlace particular que dão a um caso ou a eleição de certas normas em lugar de outras – foi alcançado seguindo procedimentos interpretativos impessoais que excluem toda e qualquer influência de suas preferências pessoais. Pretendem explicar tudo, pensar que dirigem com total neutralidade o destino dos demais, que cada uma de suas decisões se baseia (ou está fundamentada unicamente) em uma avaliação estritamente racional e objetiva das normas, valores e fatos.
Aliás, levamos tanto tempo ouvindo hinos à imparcialidade e neutralidade, que ser racional não somente parece o normal, senão o normativo: é o que o juiz tem que ser. Daí que não surpreenda a seriedade com que muitos juízes afirmam carecer de sentimentos, prejuízos, desejos, expectativas e/ou ideologias, assegurando que jamais lhes hão guiado no exame de um caso. Na verdade, quase todos asseguram (e “vendem” a imagem de) que unicamente se movem pela razão jurídica e que atuam como neutras e imparciais “máquinas de pensar”, considerando traição institucional o uso dos sentimen­tos, prejuízos e/ou ideologias, como se de algo nefando se tratara[3].
Mas como os sentimentos, prejuízos, desejos, medos, expectativas existem e são inevitáveis, «explicar lo que hace el juez es tan im­portante como analizar lo que el juez dice que ha hecho» (Wróblewski, 1989). Os juízes podem descrever as forças impessoais de suas decisões como queiram, mas a realidade é que não há forças impessoais em cada uma das decisões que tomam: não há uma só decisão que não tenha sido modelada por mentes humanas em interação com outras mentes humanas. A história de toda Justiça é a história de interesses, ideologias, rivalidades, de amizades, de ambições pessoais e nacionais. Uma interpretação, qualquer interpretação que gere uma decisão, sempre é experimentada e levada a cabo “por alguém”. Existe uma fenomenologia do intérprete-autorizado, uma fenomenologia que depende do temperamento, da história pessoal, da ideologia e da cultura de cada julgador. Ninguém está livre de influências, preferências, desejos e crenças, assim como de preferir uma solução a outra ou de deixar-se levar por associações (neuronais) tão arraigadas que se converteram em totalmente inconscientes ou pouco conscientes. Como recorda Esser (1961), o juiz tende a «ocultar la motivación real de su compor­tamiento, hasta tal punto que esos motivos, impulsos y objetivos pri­marios se niegan en buena conciencia y se rechazan con indignación ... (es fácil) camuflar profesionalmente la motivación (real) con motivos que se llaman jurídicos».
Já não é nenhum segredo que nossa experiência pessoal contamina nossas idéias sobre como funciona o mundo. Todos fazemos extrapolações de nossa existência para poder entender o mundo. Na arte isto se considera uma vantagem, mas no direito se considera uma contaminação. As idéias são infecciosas, conformam nosso ser e tudo o que vivemos nos chega através da mente. A palavra clave está aí: a mente. O único que fazemos em nossa vida é descobrir o que é construído por nosso cérebro que, “lejos de ser un órgano perfecto, es un kluge, un apaño, o más bien, un conjunto de apaños improvisados por la evolución para resolver diversos problemas de adaptación [...]De ahí la falibilidad del cerebro a pesar, paradójicamente, de su maravillosa capacidad intelectual: podemos resolver problemas de física o de matemáticas de una complejidad inmensa al mismo tiempo ser incapaces de solucionar de manera lógica un conflicto, de tomar decisiones puramente racionales, de no dejarnos llevar por los arrebatos emocionales, de no sernos tan vulnerables ante los prejuicios, recordar dónde hemos dejado la llaves del coche…”.(Marcus, 2010)
Deixando a um lado as pressões externas e, portanto, as mais visíveis, o juiz é, como todos os humanos, um ser estritamente «condicionado», ainda que não chegue a ser um autômato «determinado». Todos nos sentimos livres e nos cremos responsáveis de nossas decisões e comportamentos. Vã ilusão. Porque em grande parte - sem chegar ao determinismo absoluto - não fazemos senão responder a uns condicionamentos internos dos que não somos conscientes. De ordinário, ainda que nem sempre, conhecemos as pressões políticas, mediáticas ou econômicas as que estamos submetidos; mas ignoramos a existência de outras mu­ito mais importantes que latem em nosso interior e que são geradas por nossa atividade neuronal sem saber como as produzimos ou o fazemos. Somos o resultado de vários processos concorrentes: uns psicobiológicos, que parecem os mais significativos, e outros sociais e culturais. Cremos atuar, em outras pa­lavras, guiados pela razão e de fato são os genes, o cérebro, a educação familiar, a cultura e o contexto social os que nos movem.
Ainda que só fosse por isto, assim se explicaria que se as leis são as mesmas, as sentenças sejam diferentes porque diferentes são seus autores. Para entender a atividade judicial não basta com a análise das leis, das decisões, nem das pressões institucionais e/ou políticas: há que estudar a personalidade do juiz, que é donde conduzem e desde onde se (re-)elaboram todas as infor­mações e pressões, externas e internas, que terminam nos atos de aplicação do direito. O processo de realização do direito, na sua forma concreta de existência, exige sempre a participação integral da personalidade do sujeito que compreende.
Na pessoa do juiz concorrem informações procedentes do caso concreto e das normas, princípios, valores e ideologias (Kennedy, 2010), mas também de determinados impulsos internos (seu modo de pensar, suas crenças, seus prejuízos e seus [curto-] circuitos neuronais cognitivos e afetivos com todas as limitações que isto implica), que são os que, como qualquer ser humano, cabalmente integram sua personalidade e se prestam naturalmente a cínicas manipulações. Quem decide não é uma máquina senão um homem e, ademais, um ser humano singular, distinto dos demais.
Dito de modo mais simples (e jurídico): porque não existem dois cérebros iguais, porque cada cérebro constrói o mundo de maneira ligeiramente distinta dos demais cérebros, porque cada cérebro difere funcionalmente no modo em que armazena, recupera e processa a informação, não há uma interpretação completamente neutra, impessoal e objetiva do que expressa a “norma”, senão simplesmente uma interpretação dentro de nossas cabeças (uma construção pessoal), interpretação que se desencadeia através dos elementos externos e internos que cada indivíduo (ou cérebro) em particular está melhor preparado para registrar e processar.
Ademais, o problema que tem que afrontar o cérebro aqui é que os sinais procedentes do mundo (em nosso caso, da norma) não costumam representar uma mensagem codificada, senão que são potencialmente ambíguos e dependentes do contexto, e não vem necessariamente acompanhado de juízos prévios sobre seu significado (Edelman, 1987). Daí a razão pela qual que ler um texto necessariamente implica interpretá-lo[4] : nenhum significado é inerente e os textos não falam por si mesmos. O significado da norma é algo que descobrimos e elaboramos. Embora existam fatos, normas, valores e princípios dados e os intérpretes os apresentem dentro de um tecido narrativo que lhes dá certo sentido, o certo é que todo discurso jurídico parece estar desenhado para mascarar toda a exuberância irracional provocada pelo diálogo interno cognitivo-emocional do sujeito-intérprete[5]. De forma mais simples, o resultado final da tarefa interpretativa depende da perspectiva do intérprete: as normas jurídicas não são mais que fichas com as que jogar sofisticados jogos analíticos e/ou hermenêuticos. As normas possuem somente palavras e nenhuma representação de valor a priori. Quais os valores e significados que devem ser ligados a estas palavras são problemas vinculados à tarefa do intérprete. E ele estabelecerá sempre aquilo em que ele mesmo crê (D. Simon, 2006).
Mas não basta com estabelecer estas afirmações, que qualquer profissional com experiência percebe de imediato. O que sucedeu como novo nas últimas décadas é o intento de estudar cientificamente este fenômeno, situando-o na arquitetura cerebral humana (nas atividades que transcorrem no cérebro de uma pessoa quando esta está interpretando e formulando juízos de valor) com o objetivo, quiçá, de atingir os seguintes propósitos: a) estabelecer a evidência de que é o cérebro, como uma máquina antecipadora, associativa, detectora de pautas e elaboradora de significado, que constrói o resultado de toda e qualquer interpretação, comparando automaticamente o contexto de suas experiências passadas com as percepções presentes e as expectativas de futuro; b) analisar os múltiplos fatores e influências, inatas e adquiridas, que condicionam o momento final do processo de interpretação jurídica (isto é, a decisão jurídica); e b) desenhar uma metodologia jurídica o mais amigável possível com relação às limitações próprias da capacidade cognitiva do sujeito-intérprete.
E é precisamente neste particular que as ciências da vida e da mente, ainda quando vão unidas a um programa reducionista (Churchland, 2006), podem efetuar ricas e esclarecedoras contribuições às atuais teorias hermenêuticas, acusadamente no que se refere ao papel que as emoções, os prejuízos, as crenças e preferências pessoais, a vulnerabilidade psicológica, os condicionamentos ideológicos, etc., efetivamente desempenham na ativa e comprometida tarefa interpretativa levada a cabo nos processos de tomada de decisão: podemos tentar ser terrivelmente objetivos, mas o que não podemos é olvidar de algo muito importante acerca do que é ser um ser humano. Como seres humanos, todos sabemos que se sente de certo modo e desde dentro. E o juiz, como qualquer besta biológica de nossa espécie, tem sensações, pensamentos e sentimentos privados e por vezes inefáveis que têm lugar de algum modo em seu cérebro.
O direito não é, e jamais será predominantemente um sistema racional de pensamentos, ao menos enquanto a genética não produza inéditos milagres nos cérebros das pessoas. Não, não pode sê-lo, porque ele consiste em decisões sobre distintas possibilidades de ordenação político-social para as condutas humanas. Essas decisões são tomadas por primatas humanos, indivíduos que estão eles mesmos envolvidos - direta ou indiretamente, quando menos ideologicamente – em tais condutas. De fato, uma decisão não costuma resultar mais racional que a vontade, as emoções e o conhecimento de quem a produz. E os atores principais da atividade jurisdicional que determinam sua dinâmica não são precisamente uns “preferidores racionais”, nem uma confraria de sofisticados jus-metodólogos, senão indivíduos que basicamente respondem às orientações de seus genes e de seus neurônios, assim como de suas experiências, memórias, valores, aprendizagens, e influências procedentes do ambiente e da mentalidade comum. Os operadores reais do direito não são e nem tão pouco funcionam assim. Como disse J. Frank (1931), também os juízes são “humanos”. E não poucas vezes – é possível agregar - até demasiado humanos...[6]
A imagem do intérprete inteiramente neutral, imparcial, por completo objetivo, despersonalizado, passa por alto da realidade. Todas as interpretações e decisões sobre o direito se inspiram no ponto de vista de alguém, na perspectiva de um ser humano único cuja recopilação de experiências passadas lhe serve como contexto, lente e trajetória para valorar sua experiência presente e, dessa forma, alterar o texto interpretado. Pese a muito que se possa desejar, não existe um ponto de vista “neutral”, e a mera possibilidade de que se possa “recuperar” (ou “institucionalizar”) a neutralidade é tão remota que resulta deprimente e tremendamente contrária a nossa marcada disposição para projetar a própria subjetividade no mundo: somos, definitivamente, uma idiossincrasia com patas.
Com efeito, os discursos interpretativos do direito, tal e como se produzem na realidade, estão constituídos por um conglomerado de heterogeneidades, isto é, são, nem mais nem menos, uma “mezcolanza indisoluble” de toda classe de indistintos e sempre variáveis componentes, racionais e não-racionais, “de elementos teóricos y prácticos, cognoscitivos y creativos, reproductivos y productivos, científicos y supracientíficos, objetivos y subjetivos”(Radbruch, 1970). Ademais, o que percebemos afeta nosso estado de ânimo e nossa capacidade cognitivo-afetiva, e não há nenhuma garantia de que podemos fiar-nos de nossas percepções: quase sempre as pintamos com as cores de nossos sentimentos e fantasias; são nossas emoções as que dão sentido às experiências interpretativas ou, como dizem alguns filósofos, que lhes outorgam valor[7].
Quem se proponha intervir aí, portanto, não terá mais remédio que tomar em conta tudo isso, ou virar às costas à realidade. Ou consagrar-se a dissimulá-la mediante alguma teorização todo o convenientemente abstrata e pedante para assegurar-se de não perturbar la galérie... E é precisamente nesse contexto que a neurociência, com suas ferramentas e métodos de análise, parece ser claramente a disciplina que, a longo prazo, nos permitirá encontrar vias altamente sofisticada para entender as aptidões psicológicas específicas do ser humano à hora de formular juízos de valor, de interpretar, de justificar e de decidir.
É definitivamente necessário assumir e dar-se conta de que em todos os casos a interpretação e a aplicação do direito está causada por eventos cerebrais. Chegou o momento de começar a operar com o que já sabemos sobre o cérebro e como isso pode vir a influenciar o atual modelo teórico e metodológico da ciência do direito. Para tanto, devemos partir da premissa de que a capacidade moral e ético-jurídica é (ou deve ser) contemplada como um atributo do cérebro humano, circunstância esta diretamente relacionada com o problema da tomada de decisão humana em todas as suas dimensões. E a compreensão do comportamento humano oferecido até agora pela neurociência é perfeitamente compatível com esta perspectiva.
Em outras palavras, os estudos provenientes das neurociências estão exigindo a gritos um novo despertar da consciência hermenêutica dos juristas, uma reinvenção ou construção conjunta de alternativas metodológicas reais e factíveis, compatível com a dimensão essencialmente humana (neuronal) da tarefa de elaborar, interpretar, justificar e aplicar o direito. Enfim, um novo modelo hermenêutico-interpretativo que, mantendo uma relação mais amigável com o funcionamento do cérebro, nos proporcione instrumentos mais frutíferos e fascinantes de cultivar o direito do que essa espécie de hermenêutica jurídica “no vazio” em que todos nos acostumamos a comprazer-nos nos velhos tempos.
Notas:
[1] Dito de outro modo, o sentimento de injustiça (ou de justiça) gerado e ajuizado pelo cérebro consiste, fundamentalmente, em recriar as vivências pessoais de cada intérprete (uma variedade de dúvidas, intuições, memória, emoções, desejos, crenças, expectativas,...), isto é, de aproximá-lo a suas próprias circunstâncias particulares. Leva a eleger, mas a eleição deriva da interpretação; não é um ato soberano ou um mero exercício da vontade deliberada e puramente racional. Para recordar as palavras de M. Sandel (2011): “La justicia, no hay más remedio, enjuicia. [...] Las cuestiones relativas a la justicia se ligan a ideas contrapuestas sobre el honor y la virtud, el orgullo y el reconocimiento. La justicia no solo trata de la manera debida de distribuir las cosas. Trata también de la manera debida de valorarlas”.
[2] Pode-se dizer, inclusive, que a discricionariedade já não pode mais ser tratada – à maneira de Hart e Dworkin – como uma consequência de alguma propriedade dos materiais jurídicos (ser “determinados” ou “indeterminados”) ou dos casos (ser “fáceis” ou “difíceis”), senão que deve ser tratada como um atributo inerradicável da tarefa cognitivo-interpretativa (racional e emocional) que adotará cada juiz em busca de alcançar algum resultado ao interpretar os materiais jurídicos (as fontes jurídicas) ou resolver os casos.
[3] Na verdade, consideramos difícil entender como os juízes conseguem abraçar uma idelologia tão implacável na (aparente) ausência de um estado colossal de dissonância cognitiva, mas muitos parecem capazes de fazê-lo. Seja como for, temos a impressão de que as teorias e os discursos que encaram os juízes como tomadores de decisões racionais parecem configurar uma clara manifestação de um “instinto de autoproteção de manada” elevado a um nível mais complexo de funcionamento teórico-institucional.
[4] Contudo, supomos que muitos ainda fomentem uma concepção muito pouco elaborada acerca do processo de realização do direito, a saber, que o objetivo de interpretar um texto é, simplesmente, deixar que este “fale por si mesmo” para descobrir o significado inerente a suas palavras. Mas para que isso ocorresse, para que fosse perfeita, a linguagem empregada pelo legislador teria que, entre outras coisas: a) não ser ambígua ( salvo, talvez, quando o legislador pretende ser ambíguo à propósito); b) sistemática (em lugar de idiossincrásica); c) estável (de modo que, por exemplo, os legisladores fossem capazes de comunicar-se claramente com os destinatários das normas e/ou seus intérpretes autorizados); d) não redundante (para não perder tempo e energia); e) ser capaz de expressar de forma concisa e convincente todos e cada um de seus objetivos e/ou finalidades. Em resumo, cada palavra se utilizaria de uma maneira constante e desembruscada, cada frase seria limpa e desenturvada como uma fórmula matemática; uma norma com essas características seria totalmente analítica e mostraria à simples vista a estrutura lógica dos fatos ( princípios e valores) asseverados ou negados.
[5] Nesse sentido, por exemplo, Kennedy (2010) sustenta que “una “hermenéutica de la sospecha”, o búsqueda de las motivaciones ideológicas escondidas en las sentencias judiciales que se presentan a sí mismas como técnicas, deductivas, objetivas, impersonales o neutrales, ha sido durante los últimos cien años la característica más importante de los debates norteamericanos sobre la decisión judicial. En el discurso jurídico, la evidencia de esta imputación de motivaciones casi nunca es flagrante, en el sentido de que implique una admisión de intención. En las sentencias judiciales, los jueces siempre “niegan”, en el sentido común del término, que estén actuando por motivos ideológicos. Esto es, afirman explícitamente que el resultado – el desenlace que le dan a un caso al elegir una particular resolución para una cuestión de derecho o de definición de ciertas normas en lugar de otras – fue alcanzado siguiendo procedimientos interpretativos impersonales que excluyen la influencia de sus ideologías personales. Obviamente, se trata de una convención y dice poco sobre lo que “realmente” está sucediendo.[…] Todos quieren que sea verdad que no sólo es posible sino también habitual que los jueces juzguen desproveídos de toda ideología. Pero todos están al tanto de la crítica, y todos saben que la teoría ingenua del imperio de la ley es una fábula, y aquellos que lo saben sospechan que las versiones sofisticadas de la filosofía del derecho contemporánea no son mucho mejores”.
[6] O fato de que os pressupostos sobre a racionalidade dos juízes e o comportamento real dos seres humanos se mostrem tão desajustados é obviamente problemático. O perigo de pensarmos que não passamos de tomadores de decisões racionais é que isso nos impulsiona exatamente na direção desse tipo de comportamento. Esse modo de pensar solapa nossa natureza e faz com que criemos uma enganosa sensação de controle, “abolindo” nossas emoções. Como explica Robert Frank (1998), “aquilo que pensamos sobre nós mesmos e sobre as nossas possibilidades determina as nossas aspirações”. Ironicamente, uma perspectiva puramente racional, neutra ou objetiva está longe de ser a melhor alternativa. Ela limita nossa visão a ponto de nos fazer relutar em nos envolvermos e/ou assumir os fatores emocionais que condicionam nossas decisões. Daí a advertência de James Boyle (1985): “Los realistas fueron quines nos hicieron ver que los jueces, para ponerse los pantalones, meten primero una pierna y después la otra, como todo el mundo”.
[7] A racionalidade e a lógica seguramente ajudam a interpretar e aplicar direito, e não se deve substimar a importância de transformar nossos vagos instintos em um conjunto explícito de argumentos jurídicos. Mas nossas emoções e intuições morais, sem as quais não seríamos capazes de valorar, existem muito antes de que os teóricos e filósofos do direito propuseram os primeiros métodos para orientar a interpretação jurídica.

Informações Sobre o Autor

Atahualpa Fernandez
Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara;Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Titular Cesupa/PA (licenciado); Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB; Membro do Ministério Público da União /MPT (aposentado); Advogado.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

HERMENEUTICA E INTERPRETAÇÃO DA DECISÃO JURÍDICA - A Katchanga e o bullying interpretativo no Brasil

A Katchanga e o bullying interpretativo no Brasil

O paradoxo da interpretação: desvelando as obviedades do óbvioJorge Luis Borges escreveu em 1944 um texto intrigante (e qual dele não seria?) no qual um personagem fictício, Pierre Menard, escreveu três capítulos do Don Quijote. A empreitada de Menard era reescrever o Cervantes original. Borges conduz o conto de forma assaz sarcástica, demonstrando a impossibilidade de tal empreitada. Mas, mesmo que fosse possível, o mesmo texto trazia sempre novos sentidos, em face da impossibilidade de sequestrar o tempo e a história. No Direito, ainda hoje se acredita que é possível fazer interpretações cronofóbicas, factumfóbicas e a ahistóricas. O personagem Menard já mostrava o fracasso desse intento. Uma frase derruba tudo isso: o tempo é o nome do ser (Heidegger).
Escrevemos por quê? Porque a escrita é o fracasso da memória. Se nossa memória fosse perfeita, não necessitaríamos registrar as coisas. Nem tirar fotos. Li outro dia um comentário ao Pierre Menard borgiano nessa linha. Ali dizia: fôssemos capazes de pensar todas as ideias possíveis, não precisaríamos escrever e nem registrar o que pensamos. Por isso, na visão do narrador (Menard), a escrita é um monumento ao nosso fracasso de não conseguirmos pensar nada além de nossas próprias ideias (http://revistaheresia.com.br/?p=27). Acrescento: se existisse um mapa perfeito, não precisaríamos do mapa. Por isso, estamos condenados a interpretar. Um livro fala de outros livros, como diz o personagem de O Nome da Rosa, de Umberto Eco. Não há grau zero. Não há a primeira palavra, dizia Gadamer (e nem a última). Como Sísifo, estamos condenados a rolar a pedra dos sentidos até o alto da montanha; e quando achamos que deles nos apropriamos, somos empurrados de volta ao começo.
Carregando pedras. E fincando raízesPois é carregando pedras que hoje volto a um assunto que me é muito caro. Não vou reescrever a mim mesmo. Como em Menard, mesmo que meu texto fosse exatamente igual ao que escrevi anos antes, o sentido dele, a “sua norma”, seria outro. Pronto. Já disse o que vou fazer. Sintaticamente, vou me repetir em alguns parágrafos. Pragmaticamente, o contexto temporal, factual e histórico inexoravelmente será outro. E os meus leitores, mesmo os que já leram, já são outros, porque banhados em outra água do rio... Venho contando a estória da katchanga de há muito. Aulas, palestras... Internet. Talvez o personagem Menard signifique “fixem o sentido do Quijote”. Pois é. Repetição — ainda que nunca se possa dizer a mesma coisa com as mesmas palavras (aqui homenageio o grande filósofo Ernildo Stein) — é também uma forma de fincar raízes.
Prefiro pecar pelo excesso a pecar pela omissão. Hoje, quando a cada dia perdemos nossa capacidade de indignação e quando nossas críticas são encobertas por um “mundo de significados de balcão”, torna-se necessário, até por um, digamos assim, “dever cívico”, criticar, criticar e criticar, desobnubilando as obviedades do óbvio. Heideggerianamente, se o nada é o véu do ser, temos que nadificar esse nada, para que a coisa seja desvelada, fazendo uma a-letheia. Ou, homenageando o grande antropólogo Darci Ribeiro: Deus é tão treteiro, faz as coisas tão recôndidas e sofisticadas, que ainda precisamos dessa classe de gente, os críticos, para “desvelar as obviedades do óbvio”, ainda que a palavra “óbvio” seja usada, aqui, eufemisticamente. Se me entendem...
A estória de um jogo... A metáfora da interpretaçãoEntão, sigo. Pedi um trabalho sobre princípios e regras para os meus alunos no mestrado em Direito. Alguns dos papers vieram com uma estorinha que servia para criticar a ponderação e uso dos princípios. A estória que apresentaram era a Katchanga (Real), que, segundo eles, circulava na internet. Alguns, mais velhos, já tinham ouvido eu contar essa estorinha há muitos anos atrás. No mínimo há 15 anos. Pois, como poderemos perceber, mais recentemente a estória da Katchanga ganhou “novos foros”, longe daquilo que significava originalmente. Com “C” ou com “K”, os alunos que usaram a estória tinham a convicção de que, ao convocarem a estorinha, estavam sendo altamente críticos. E aqui me pareceu oportuno intervir.
A estória da Katchanga foi inventada pelo saudoso Luis Alberto Warat. Ele a chamava de “O Jogo da Katchanga...” (ele não falava português; retrabalhou os “escravos de Jô”, que jogavam “caxangá”... no seu portunhol, virou katchangá e, depois, simplesmente katchanga). Discuti muito em sala de aula e contei várias vezes a estorinha em conferências. Warat contou a estória para metaforizar (e criticar acidamente) a dogmática jurídica. Afinal, dizia “a dogmática jurídica é um jogo de cartas marcadas”. E quando alguém consegue entender “as regras”, ela mesma, a própria dogmática, tem sempre um modo de superar os paradoxos e decidir a “coisa” ao seu modo... (veja-se como o STJ consegue, em um dia, dizer que um furto de R$ 85 não é insignificante e, no outro, dizer que uma sonegação de R$ 3.296,00 é bagatela...). Ela, por si — acrescento — é decisionista, no sentido da “vontade do poder” (Wille zur Macht). Mas, vamos a estória: existia um Cassino que aceitava todos os tipos de jogos. Havia uma placa na porta: aqui se jogam todos os jogos! Isto é, não havia nada que ficasse de fora do “sistema de jogo” do Cassino. Tratava-se de um Cassino non liquet (na verdade, vedação de non liquet). Um Cassino que era um sistema aberto e fechado ao mesmo tempo (prato cheio não só para hermeneutas, como também para sistêmicos, como Marcelo Neves, Germano Schwartz, Willis Santiago Guerra Filho e Leonel Severo Rocha, este último meu interlocutor, juntamente com Warat, Albano Pêpe, Ernildo Stein e Sérgio Cademartori). Poderíamos chamar esse “sistema do cassino” de uma espécie de “Cassino Fundamental” (um Grundcassino, a exemplo da Grundnorm kelseniana?)...! De uma forma mais sofisticada, pressupõe-se que “todos os jogos segam jogados”, ou algo nessa linha. As derivações são múltiplas, pois.
De como a dogmática jurídica aceita todos os jogosPois bem. Chegou um forasteiro e desafiou o croupier do cassino, propondo-lhe o jogo da Katchanga. Como o croupier não poderia ignorar esse tipo de jogo — porque, afinal, ali se jogavam todos os jogos (lembremos da vedação de non liquet) — aceitou, ciente de que “o jogo se joga jogando”, até porque não há lacunas no “sistema jogo”.
Veja-se que o dono do Cassino, também desempenhando as funções de croupier, sequer sabia que Katchanga se jogava com cartas... Por isso, desafiou o desafiante a iniciar o jogo, fazendo com que este tirasse do bolso um baralho. Mais: o desafiado (Grundcassinero) também não sabia com quantas cartas se jogava a Katchanga... Por isso, novamente instou o desafiante a começar o jogo.
O desafiante, então, distribuiu 10 cartas para cada um e começou “comprando” duas cartas. O desafiado, com isso, já aprendera duas regras: 1) Katchanga se joga com cartas; 2) é possível iniciar “comprando” duas cartas. Na sequência, o desafiante pegou cinco cartas, devolveu três; o desafiado (croupier ou Grundcassinero) fez o mesmo. Eram as regras seguintes.
Mas o “Grund” (passemos a chamá-lo assim) não entendia o que fazer na sequência. O que fazer com as cartas? Eis que, de repente, o desafiante colocou suas cartas na mesa, dizendo Katchanga... e, ato contínuo, puxou o dinheiro, limpando a mesa. Grund, vendo as cartas, “captou” que havia uma sequência de três cartas e as demais estavam desconexas. Logo, achou que ali estava uma nova regra.
Dobraram a aposta e... tudo de novo. Quando Grund conseguiu fazer uma sequência igual à que dera a vitória ao desafiante na jogada primeira, nem deu tempo para mais nada, porque o desafiante atirou as cartas na mesa, dizendo Katchanga... Tinha, desta vez, duas sequências...! Dobraram novamente a aposta e tudo se repetiu, com pequenas variações na “formação” do carteado. Grund já havia perdido quase todo o dinheiro, quando se deu conta do óbvio: a regra do jogo estava no enunciado “ganha quem disser Katchanga primeiro”. Bingo!
Pronto. Grund desafiou o forasteiro ao jogo final: tudo ou nada. O Armagedom! Todo o dinheiro contra o que lhe restava: o Cassino. E lá se foram. O desafiante pegava três cartas, devolvia seis, buscava mais três, fazia cara de preocupado; jogava até com o ombro... Grund, agora, estava tranquilo. Fazia a sua performance. Sabia que sabia! Ou pensava que sabia que sabia...!
Quando percebeu que o desafiante jogaria as cartas para dizer Katchanga, adiantou-se e, abrindo largo sorriso, conclamou: Katchanga... e foi puxar o dinheiro. O desafiante fez cara de “pena”, jogando a cabeça de um lado para outro e, com os lábios semicerrados, deixou escapar várias onomatopeias (tsk, tsk, tsk)... Atirou as cartas na mesa e disse: Katchanga Real!
Moral da estória: esperteza não quer dizer “estado de natureza”Moral da estória: a dogmática jurídica sabe tudo, tem — sempre — todas as saídas, mas sempre sobra algo!!! Os sentidos não cabem na regra. A lei não está no direito, e vice-versa. Não há isomorfia. Há sempre um não dito, que pode ser tirado da “manga do colete interpretativo”. Esse é o papel da interpretação. Para o “bem” e para o “mal”...!
Mas, luz amarela, atenção: a estória era para mostrar o paradoxo que representa o fenômeno “dogmática jurídica”, com seu “pretenso sistema fechado” e os modos de derrotá-la. Ou não. Dizia-se (eu repetia muito isso pelo Brasil afora): você tem que saber jogar a Katchanga... (Real!). Portanto, não basta pensar que aprendeu jogar a Katchanga. O jogo é mais complexo, uma vez que a própria Katchanga Real representa um problema.
Explico. Quando a estória foi criada, não imaginávamos o “estado de natureza hermenêutico” provocado pelas teorias voluntaristas (mormente as pan-principialistas que se multiplicaram Brasil afora,essa fábrica de princípios que provoca um autentico bulling hermenêutico...!). Nem de longe poderíamos imaginar essa onda “solipsista” que se espraiou pós-Constituição de 1988, principalmente nos últimos 10-12 anos. Sendo mais específico: em um Estado dito Democrático de Direito, a tarefa interpretativa (applicatio) da magistratura é argumentar dentro dos parâmetros dos mundos constitucionalmente possíveis. Em parte, lutava-se nas brechas da institucionalidade, para encontrar vaguezas e ambiguidades, como analíticos que éramos. Mesmo após o advento da Constituição, levamos alguns anos para compreender o novo paradigma e a própria autonomia que o direito adquirira. A “função” da Katchanga se alterara... E muito! Por exemplo, a crítica ao positivismo se alterou profundamente; passamos a nos preocupar com o discricionarismo e os ativismos. Só que parcela considerável dos juristas ainda não se deu conta disso, o que é profundamente lamentável. Com efeito, essa discussão está muito atrasada em terrae brasilis.
Prossigo. Andante. Mesmo depois da Constituição, usei a metáfora várias vezes, já dando a ela uma “roupagem mais hermenêutica”. Na verdade, sempre a relatei para evidenciar o papel criativo da hermenêutica. Queria mostrar que o texto jurídico não é plenipotenciário. Lá adiante, na fusão de horizontes, levando em conta a Wirkungsgeschichtliches Bewußtsein, há um algo que se manifesta. Como falei antes, há sempre um não dito, que deve ser descoberto (desde a primeira edição do Hermenêutica Jurídica e[m] Crise — da década de 90, trabalho com as três dimensões: Erschossenheit, Entdeckenheit e Unverborgenheit). Como diz Gadamer, “ser que pode ser compreendido é linguagem”. A linguagem não abarca tudo. Sempre sobra “um real” ainda não dito. Eis aí a questão do des-velamento (Unverborgenheit).
Assim, em um primeiro momento a Katchanga Real era, efetivamente, o salto para além do exegetismo (ou do paleojuspositivismo, para homenagear Ferrajoli — ver o livro Garantismo, Hermenêutica e (Neo)constitucionalismo, Livraria do Advogado, 2012). Em um segundo momento, a Katchanga poderia ser um perigoso elemento de, sob pretexto de superar o exegetismo, transformar-se em um álibi para poder “dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”... Algo que o voluntarismo interpretativo de terrae brasilis fez e faz. Basta ver a pan-principiologia...essa bolha especulativa de princípios que assola a pátria. Afinal, se princípios são normas — e deve haver já mais de 2.000 dissertações e teses que dizem isso —, qual é a normatividade de “princípios” (sic) como o da confiança do juiz da causa, da verdade real, da instrumentalidade, da cooperação processual, da ausência eventual do plenário, etc.?
Percebe-se, assim, o modo como a estória contada por Warat se encaixa perfeitamente ao modo como (ainda) opera a dogmática jurídica, que sobrevive a partir do senso comum teórico dos juristas (que ele também caricaturava como o “monastério dos sábios”). Talvez a dogmática tenha até se aprimorado (tenho referido, de uns oito anos para cá, que a dogmática jurídica passou por uma “adaptação darwiniana”, porque até mesmo os juristas mais “tradicionais” “descobriram” que as palavras da lei são vagas e ambíguas, coisa que denunciávamos desde o início dos anos 80, quando nem se falava ainda em Constituição; junto a isso houve a descoberta da “era dos princípios”.
Registre-se, por relevante, que autores contemporâneos a Warat, como é o caso de Tércio Sampaio Ferraz Jr., oferecem uma excelente descrição para a dogmática jurídica que possui essas mesmas características. Tércio, já há mais de 30 anos, em específico, retrata a dogmática como técnica, dominação e decisão que se desenvolve a partir da confluência de três fatores históricos específicos: o método dos glosadores/comentadores do século XII e seguintes; a concepção sistemática que emerge das correntes do jusnaturalismo racionalista; e as construções teóricas do final do século XIX e início do século XX, mais especificamente a discussão em torno da polêmica “jurisprudência dos conceitos vs. jurisprudência dos interesses”. Tércio aponta para o fato de que todo saber dogmático que se constitui no direito tem como polo unificador a necessidade da decisão.
Em termos mais simples: o que diferencia o nosso direito de outros direitos existentes em outras culturas e outros tempos históricos é, exatamente, a impossibilidade de “decisões salomônicas”, como bem lembra João Maurício Adeodato. A vedação de non liquet impõe à dogmática uma espécie de tarefa: os problemas jurídicos precisam de uma solução decisional. Essa é a questão. A Katchanga, no fundo, representa esse fator de decisão que, como desmascarava Warat, não pode ser encontrada a partir de uma análise pedestre dos textos que compõem os códigos e a legislação de uma maneira geral. Há uma plêiade de fatores a influenciar a decisão que ficam de fora dessas análises estritas do fenômeno jurídico e do modo de se retratar, tradicionalmente, o papel da dogmática jurídica.
Por certo que, atualmente, nossa tarefa, enquanto viventes de uma democracia constitucional, é criar as condições para a extirpação de qualquer tipo de decisionismo. E a Katchanga Real, pós-exegética, corre o risco — efetivo — de ser decisionista, discricionária, solipsista, arbitrária... Exatamente por isso é que já não a uso de há muito, em face desse alto fator de risco deciso-solipsista que parcela da doutrina assumiu, recepcionando, equivocadamente, a Wertungsjurisprudenz (jurisprudência dos valores), a Teoria da Argumentação Jurídica, que se transformou na “pedra filosofal da interpretação” (d’onde a disseminação descriteriosa da ponderação de valores) e um certo realismo jurídico, problemática que explico em trinta páginas na introdução da 4ª Edição do Verdade e Consenso, para onde me permito remeter o fiel, crítico e inteligente leitor desta coluna hebdomadária. Por isso, minha cruzada, de há muito, está assentada na necessidade de se criar anteparos à atividade decisória, num contexto democrático de legitimação (é a Teoria da Decisão que proponho). Uma justificação que, com Dworkin, podemos dizer que deve ser a que melhor retrata o direito da comunidade política como um todo.
Concluindo: de como a crítica corre o risco de vitimar a sua construçãoNuma palavra: estórias não pertencem a ninguém. Podem ser utilizadas à vontade. Só que cada uma tem uma “história institucional”, cujo contexto devemos respeitar. Lembremos Borges e seu Pierre Menard. A estória da Katchanga Real não pode representar umponto cego, porque corre o risco de vitimar sua construção (quando alguém diz “decido conforme minha consciência” ou “decido conforme os valores escondidos debaixo da lei”, “decido conforme a razoabilidade”, “decido conforme a consciência”, “em nome do interesse público”, etc., já estamos em face desse “ponto cego”, vitimados pela arbitrariedade interpretativa!). A Katchanga não “resolve” o problema da crítica à ponderação à brasileira. Não basta dizer “estão katchangando”, se quem pronuncia a frase está igualmente a katchangar... No máximo, está-se criando um paradoxo... E, como se sabe, paradoxos são coisas sobre as quais não podemos decidir. Portanto, a katchanga é muito mais do que isto. Não basta dizer que essa “ponderação à brasileira” está assentada em uma espécie de “pedra filosofal da interpretação”, que se chamaria Katchanga Real. O problema é bem mais complexo, porque reside na própria Teoria da Argumentação Jurídica e, em consequência, na Abwägung (ponderação). Ou seja, não dá para pensar que, fosse bem utilizada, a ponderação seria a saída para a irracionalidade decisional...
Ora, na verdade, o que deve ser dito é que a ponderação à brasileira não é uma representação de uma “teoria da Katchanga” (sic), mas, sim, ela própria é a Katchanga no modo como “a joga” a dogmática jurídica. Ela representa uma forma de decidir, e afirmar, assim, o non liquet. O “mito Katchangal” está presente na própria teoria de Alexy e no elemento decisionista inerente ao seu procedimento ou fórmula da ponderação. Se é verdade que criamos uma “ponderação à brasileira”, também é verdade que há fortes traços discricionários e voluntaristas na Abwägung original (que, aliás, constou inicialmente na Interessenjurisprudenz, de Philipp Heck, setenta anos antes de Alexy ter escrito a sua TAJ).
No fundo, a defesa da discricionariedade já é a adoção da Katchanga Real. Pela simples razão de que é o sub-jectum que definirá o sentido. E os critérios ele busca(rá) na “certeza de si do pensamento pensante”. Esse é o ponto central. E encerro: ponderação e a discricionariedade são irmãs siamesas, bastando lembrar, aqui, das agudas e azedas críticas que Müller e Habermas fazem à ponderação. Tudo isso serve também para o “enquadramento” das teses como “o livre convencimento”, “instrumentalismo processual” etc. E alertar a comunidade jurídica sobre essa “novilingua” — para lembrar o papel da linguagem em Orwell, no seu 1984 — que deu um novo nome ao solipsismo no Brasil: ele passou a ser chamar “ponderação”, mas que pode ser substituída por Katchanga Real.
Mas pode haver muito mais na estória da Katchanga (Real). Nela, é possível ver (também) fortes traços de nominalismo e pitadas da velha sofística (lembremos dos comentários de Bloom aos textos de L. Caroll). Meu interesse em (re)contar o “mito” da Katchanga é denunciar esse viés pragmati(ci)sta presente na invocação que o jogador faz da Katchanga Real. É uma forma de positivismo, porque estabelece um grau zero de sentido. O nominalismo era (e é) isso. Todo positivismo é pragmaticista, assim como o nominalismo também o é. Positivismo e nominalismo andam juntos. A convocação da Katchanga Real é uma forma de estabelecer a vontade do poder (Wille zur Macht). Busquemos, novamente, o personagem Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho. Discutindo sobre o papel do “desaniversário”, pelo qual haveria 364 dias destinados ao recebimento de presentes em geral e somente um de aniversário, Humpty Dumpty diz para Alice: é a glória para você. Ela responde: não sei o que quer dizer com glória, ao que ele, desdenhosamente, diz: “Claro que não sabe...até que eu lhe diga. Quero dizer ‘é um belo e demolidor argumento para você’”. Mas, diz Alice, “glória não significa ‘um belo e demolidor argumento’”. E Humpty Dumpty aduz: “Quando eu uso uma palavra, ela significa exatamente o que quero que ela signifique: nem mais, nem menos”. Observe-se bem essa frase final do personagem nominalista de Lewis Caroll... A palavra “glória” significa o que ele quer que signifique... Quando o STJ diz, em outras palavras, que “onde está escrito 15 dias, leia-se 15, mais 15, mais 15” (caso das escutas telefônicas), ele está dizendo: “dou as palavras os sentidos que quero”! Quando o TST diz “não recebo o recurso porque falta um centavo”, ele está dizendo “eis um belo e demolidor argumento”... Quando o STF diz que o não cumprimento do artigo 212 é nulidade relativa, ele está dizendo, em outras palavras: “a palavra nulidade significa o que nós queremos que ela significa”. “Nem mais, nem menos”!
É o fim “demolidor” de uma discussão! Assim como é a Katchanga (Real). Ou não! Dependerá do grau de compreensão que o utente tenha sobre a grande angústia contemporânea: afinal, o que é isto — o positivismo jurídico? O que é isto — a interpretação? O que é isto — o poder?
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 28 de junho de 2012

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...