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terça-feira, 1 de outubro de 2019

Concessionária de energia terá que indenizar seguradora por danos a eletrodomésticos de segurado



O juiz substituto da 1ª Vara da Fazenda Pública do DF condenou a Companhia Energética de Brasília – CEB a ressarcir o Itaú Seguros de Autos e Residência por danos materiais sofridos na casa de uma segurada, após falhas na rede elétrica administrada pela concessionária.

A seguradora ajuizou ação para reaver os valores pagos a três segurados que teriam tido equipamentos eletrônicos danificados. O autor alega que os danos ocasionados nos referidos objetos aconteceram devido à falha no serviço prestado pela companhia.

De sua parte, a ré limitou-se a declarar que o pedido de reparação seria improcedente, tendo em vista não haver nexo de causalidade com o evento danoso.

Em primeira análise, o juiz pontuou que, como concessionária de um serviço público, a CEB responde objetivamente por danos causados a terceiros, independentemente de culpa, bastando que se comprove o nexo de causalidade entre o ato e o resultado gerado.

Ao partir para a análise dos casos em separado, o magistrado observou que, segundo laudo pericial apresentado: “Considerando que o registro da concessionária não apresentou nenhuma interrupção, que não houve descargas atmosféricas no dia do evento e considerando o tipo de dano causado aos equipamentos ao mesmo tempo, concluo que os referidos equipamentos foram danificados devido ao fenômeno elétrico da variação de tensão de curta duração da rede de distribuição da concessionária de energia elétrica”, atestou o perito técnico.

De acordo o juiz substituto, amparado na avaliação técnica do especialista, restou evidenciado que a variação de tensão de curta duração, “trata-se de falha do serviço, consistente na variação significativa da rede”, devendo o prejuízo material da seguradora pago à segurada ser reparado.

Quanto aos outros dois segurados, o laudo demonstrou que os danos foram causados por raios nas proximidades do imóvel, sem qualquer relação com o fornecimento pela rede de distribuição da concessionária. "Uma descarga atmosférica atingiu a instalação da unidade consumidora ou ao redor (neste caso, o dano deveu-se a centelhamento, o que ocorre por indução eletromagnética nos circuitos elétricos da instalação em questão) e danificou os equipamentos e componentes do sistema de bombeamento do segurado”, explicou o perito.

A constatação levou o magistrado a concluir que, “se a ocorrência de descarga atmosférica, no caso, resultou em dano ao aparelho pela ocorrência de fenômeno conhecido como 'centelhamento', e não por falha da rede de distribuição, não se pode cogitar de nexo causal, nem mesmo por fortuito interno".

Sendo assim, o julgador determinou que a ré deve ressarcir a autora apenas na quantia de R$ 2.500,00, a título dos danos materiais causados aos equipamentos eletrônicos de uma das seguradas.

Fonte: Pauta Jurídica




segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Magistratura deve estar preparada para os reflexos das redes sociais

Fonte: Conjur



Vivemos tempos diferentes, disto ninguém duvida. Entre temerosos e fascinados, assistimos a profundas mudanças na sociedade, quiçá as maiores na história da humanidade. Das relações familiares aos drones, vamos adentrando em novas práticas, a um só tempo como expectadores e partícipes.

No mundo do Direito não é diferente. Enormes foram as mudanças entre a audiência da qual participei em julho de 1969 como promotor substituto, na comarca de Umuarama (PR), quando o escrivão, com caprichada letra, escreveu as minhas alegações finais em um enorme livro, até os dias atuais, em que uma testemunha depõe em Portugal para um juiz no Brasil, por vídeoconferência.

Entre as múltiplas e incríveis transformações, vê-se o profissional do Direito acuado por temas novos que lhe são submetidos e a tecnologia que avança avassaladora, jogando por terra princípios e práticas seculares.

O mais simples dos exemplos é o processo eletrônico, que obriga os mais idosos a aprender e adaptar-se à leitura de arquivos digitais ou, quando podem pagar, a procurar socorro de jovens estagiários.

Entre os brindes da vida contemporânea, o controle pelas redes sociais é um dos mais fortes. Na vida pública ou privada, cada vez mais, todos controlam todos. E, evidentemente, os que exercem função pública relevante são, ainda, mais controlados.

Neste particular, a série Black Mirror, da Netflix, tem bons exemplos. Alguns episódios podem levar expectadores mais sensíveis à perda do sono. Um deles, Odiados pela nação, em especial, mostra bem o alcance e a influência da viralização de notícias nas redes sociais.

Em ano incerto, na cidade de Londres, um hacker escolhe as pessoas mais odiadas no momento, em razão de más atitudes, e planeja suas mortes com base em ações tecnológicas, sem qualquer contato ou proximidade com a vítima. O julgamento é popular, através das manifestações de reprovação nas redes sociais, muitas delas carregadas de ódio. A execução parte de um inteligente hacker, perito na tecnologia.

Passo da ficção à realidade brasileira. O foco será nos magistrados, porque neles se encerra a parte mais importante dos múltiplos conflitos da sociedade. É na decisão que se define o resultado e, portanto, é no juiz que se descarrega a maior possibilidade de amor e ódio.

Iniciemos pela primeira instância e dela passemos às demais, chegando ao Supremo Tribunal Federal, hoje palco de atenções diárias dos brasileiros.

Em Brasília, o juiz federal da 14ª Vara do Distrito Federal, contrariando resolução do Conselho Federal de Psicologia do Brasil, permitiu que psicólogos atendessem homossexuais que os procurassem, visando orientação sobre terapia de reversão sexual.[i] O fato provocou enorme discussão nas redes sociais, sofrendo o magistrado pesadas acusações. Foi discutido em programas de TV e aproximadamente 364 mil resultados (acessos) chegaram ao Google em 0,41 segundos.[ii]

Em Belo Horizonte (MG), o juiz de Direito da Vara da Infância de Juventude, por autorizar a remoção de filhos de pessoas “em situação de risco”,[iii] parte delas viciadas em drogas, encaminhando-os a abrigos para posterior adoção, sofreu forte campanha na mídia, movimentou órgãos de defesa de direitos humanos e foi tema de audiência pública na Câmara dos Deputados, em Brasília.[iv]

No dia 11 passado, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a suspensão do mandato e consequente afastamento do senador Aécio Neves, suspeito da prática de ações criminosas, deve ser decidida por aquela casa parlamentar e não pelo Judiciário. O assunto viralizou e, em 0,25 segundos, tinha aproximadamente 42.300 resultados no Google.[v]

Sem fazer qualquer análise do mérito das decisões judiciais, observo que essas manifestações vão de simples comentários a acusações graves, muitas vezes carregadas de ódio incontido. Estas pessoas são chamadas de haters.

Depois do julgamento do STF, um comentarista, em uma rádio de grande repercussão, acusava o ministro Roberto Barroso, a quem se referia com termos pesados e vulgares, de vários fatos, entre outros de ser ligado à esquerda e a movimentos sociais que promovem invasão de propriedades particulares.

Manifestações de ódio podem alcançar, da mesma forma, a vida privada de celebridades. A modelo Ana Hickmann, ao exibir foto de seu filho, com 3 anos de idade, foi atacada por uma mulher que, entre outras coisas, a ele se referiu como “Eita menino bicha ridículo! Horroroso e magrelo nojento”.[vi]

Como se vê, tudo o que se está aqui a dizer não é algo que afete apenas magistrados. Manifestações radicais, em grande número, podem recair, da mesma maneira, sobre agentes do Ministério Público, policiais, defensores, advogados públicos e particulares

Focando na magistratura, fácil é ver que se vive um novo tempo e, nele, há novas formas de controle. Elas deixam de ser exercidas com exclusividade pelas corregedorias e conselhos e passam a ser feitas, também, pelas redes sociais e meios de comunicação.

Não há como impor regras a respeito. O acesso é livre, a transmissão imediata e, dependendo do assunto, pode atingir milhares de pessoas em poucos segundos. Tudo o que pode ser feito, por exemplo, pedidos de indenização em Juízo, vem depois. E em tempo real não surtem qualquer efeito. A notícia foi propagada na velocidade do vento e não há liminar que possa fazê-la voltar atrás.

Se é assim, é preciso que os magistrados (e outros atores em posições semelhantes) se preparem. Todos estão sujeitos a ver-se no palco de comentários quando menos esperem. Basta uma decisão em um dos milhares de processos que manejam diariamente.

Preparar-se significa saber como agir e reagir diante de tais situações. Evidentemente, na Faculdade de Direito, nos cursos preparatórios e nos de formação das escolas da magistratura, nada lhes foi ensinado a respeito. Preparar-se, então, significa discutir o assunto nas redes privadas e provocar as Escolas para que ele seja colocado na agenda.

Alguns aspectos desta nova realidade devem ser lembrados, sem prejuízo de outros tantos que pessoas experientes e profissionais de áreas interdisciplinares, como psicólogos ou comunicadores sociais, possam acrescentar. Vejamos.

O primeiro mandamento é prevenir-se. Evidentemente, não fugindo de decidir, pois é para isto que o magistrado foi empossado. O juiz que se omite, não decide, seja qual for a forma (por exemplo, dando vista ao MP para ganhar tempo), está no lugar errado. Prestaria um enorme favor à sociedade pedindo exoneração do cargo.

Prevenir-se significa ter o bom senso de prestar atenção a todos os reflexos de sua decisão, analisar as consequências de seu ato. Verificar, por exemplo, se há risco de a decisão não ser cumprida. Por exemplo, a decisão individual do ministro Marco Aurélio, do STF, de afastar o senador Renan Calheiros, foi descumprida pelo Senado aos 6/12/2016.[vii] Quais os efeitos desta recusa para a imagem da Suprema Corte?

O segundo é o magistrado não perder a independência por receio de ser atacado na mídia ou nas redes sociais. Se ele se curvar a possíveis críticas, buscando tornar-se popular e simpático aos olhos da sociedade, estará jogando por terra a sua autonomia funcional. A independência dos juízes não lhes foi dada, foi conquistada através de muitas lutas. Exemplo, nos anos 1930, o desembargador Paulo Américo Passalacqua, da então Corte de Apelação de São Paulo, lutou tenazmente e conseguiu que as promoções aos tribunais de Justiça contemplassem o critério de antiguidade.[viii]

O terceiro é a discrição. Dada a decisão, não cabe ao magistrado exibir-se com entrevistas, caso ela seja festejada, nem se justificar, caso ela seja repudiada. Uma vez tendo decidido, de acordo com a Constituição e as leis de seu país, como jurou ao tomar posse, seu papel está encerrado. Os recursos estão à disposição de quem dela discorda e, no Brasil, eles são fartos.

Isto nem sempre é fácil. Ninguém, inclusive os juízes, gosta de ser repudiado. Mas se isto ocorrer o fato deve ser recebido como ônus do cargo. Qualquer defesa deve ser feita em nota da associação de classe e ponto final.

Entretanto, imagine-se que houve uma ofensa extrema ou uma ameaça de morte. Nestes casos, uma ação de natureza civil, um pedido de proteção policial ou uma representação ao Ministério Público podem ser o caminho adequado. Mas sem alarde ou polêmica.

Em suma, os novos tempos, surpreendendo, encantando ou decepcionando, aí estão. O controle social sobre as decisões judiciais e outras tantas já é uma realidade. Saber conviver com essa nova situação e adaptar-se é o passo certo a ser dado.






iii O Estado de São Paulo, caderno Metrópole, 15/10/2017, A-14.










viii Passalacqua, Paulo Américo. O Poder Judiciário. São Paulo: Saraiva, 1936.

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Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.



Revista Consultor Jurídico, 22 de outubro de 2017, 12h21

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Empresa de ônibus pagará indenização a filhas de vítima de acidente

Fonte: STJ

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a condenação de empresa de transporte ao pagamento de indenização a duas filhas que perderam o pai em acidente de ônibus.

O acidente aconteceu em outubro de 1991. Na ocasião, 20 passageiros morreram e 51 tiveram lesões corporais. O Ministério Público apresentou denúncia pela imprudência e imperícia na condução do ônibus, que estava lotado.

O pedido de indenização foi ajuizado em abril de 2009, visto que as autoras, à época do acidente, eram incapazes, e só atingiram a maioridade relativa em dezembro de 2004 e março de 2008, respectivamente.

O juiz condenou a empresa a pagar às autoras pensão mensal equivalente a dois terços de um salário mínimo, além de indenização por danos morais de cem salários mínimos. O Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a sentença.

Recurso

A empresa interpôs recurso especial alegando que o tribunal paulista teria valorado mal a prova produzida nos autos a fim de reconhecer o direito das autoras ao recebimento de pensão. Também de acordo com o recurso, o valor da indenização por danos morais seria exorbitante, visto que as instâncias ordinárias não consideraram que a demora na busca da reparação é fato a ser levado em conta na fixação do montante indenizatório.

Além disso, para a recorrente, os juros moratórios deveriam incidir sobre a indenização por danos morais apenas a partir da data de seu arbitramento.

Segundo o ministro relator, Villas Bôas Cueva, a jurisprudência do STJ estabelece que, na ausência de comprovação de atividade remunerada, o pensionamento mensal deve corresponder a um salário mínimo. Por esse motivo, o ministro afastou o argumento de que o pensionamento pretendido pelas autoras não seria devido por não ter havido demonstração de que o falecido tinha trabalho remunerado.

Valor

O relator também afirmou ser inviável o acolhimento da pretensão de reduzir o valor arbitrado a título de indenização por danos morais sob a simples alegação de que se passaram mais de 17 anos entre a data do evento danoso e o ajuizamento da ação, afinal, à época do acidente, as autoras eram menores de 16 anos, motivo pelo qual contra elas nem sequer corria o prazo prescricional, a teor do que dispunha o artigo 169, inciso I, do Código Civil de 1916 (artigo 198, inciso I, do Código Civil de 2002).

“Impõe-se observar também que é presumível a relação de dependência entre filhos menores e seus genitores, diante da notória situação de vulnerabilidade e fragilidade dos primeiros e, especialmente, considerando o dever de prover a subsistência da prole que é inerente ao próprio exercício do pátrio poder”, concluiu o ministro.Leia o acórdão.
Destaques de hoje

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):REsp 1529971

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Assimetria da sucessão em relação à união estável e casamento (parte 2)




Por Venceslau Tavares Costa Filho


Na primeira parte da coluna, começamos a analisar as premissas sobre as quais se funda a decisão da maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (no julgamento do Recurso Extraordinário 876.694-MG, sob o rito da repercussão geral) acerca da inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil vigente, que estabelece regime sucessório diverso para a união estável em relação ao casamento.

Nesta segunda parte, analisaremos as diversas situações nas quais se verifica um tratamento diferenciado da união estável em relação ao casamento na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. A assimetria de tratamento entre união estável e casamento não se limita ao regime da sucessão a causa de morte, instituído em razão do art. 1.790 do Código Civil brasileiro.

O texto original da Constituição Federal de 1988 reconheceu a união estável como entidade familiar no § 3º do art. 226: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

Note-se que o poder constituinte originário fez uso da expressão “é reconhecida a união estável”, o que parece indicar a pretensão de recepcionar e emprestar efeitos jurídicos a uma situação fática preexistente ao texto constitucional. Até o advento da legislação infraconstitucional que reconheceu efeitos jurídicos específicos a união estável (Leis 8.971/1994 e 9.278/1996), esse instituto permaneceu em verdadeiro limbo jurídico.

O tratamento jurídico dispensado aos bens adquiridos durante a constância da união estável, por exemplo, em período anterior ao da vigência da Lei 9.278/1996, praticamente não discrepava da solução trazida pelo enunciado n. 380 da Súmula de jurisprudência dominante do STF; qual seja o de levar em consideração a proporção das contribuições dos conviventes na constituição do patrimônio.

O STJ, nesta linha, manifestou-se por afastar o direito à meação dos bens durante a vigência da Lei n. 8.971/1994, devendo-se levar em consideração a “participação dos companheiros na formação do patrimônio, devendo a partilha ser estabelecida com observância dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade” (EDcl no REsp 674.483/MG, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 02/02/2012, DJe 27/02/2012).[1]

O advento da Lei 9.278/1996 introduz sensível modificação neste quadrante, ao presumir o esforço comum na aquisição dos bens durante a vigência da união estável. A Lei 9.278/1996 não suprimiu, portanto, a comprovação do esforço comum como pressuposto para a partilha dos bens adquiridos durante a união estável; apenas introduzindo presunção neste sentido.

Somente com o Código Civil de 2002 é que houve uma parcial e controvertida equiparação entre a união estável e o casamento civil no tocante ao regime de bens, nos termos do art. 1.725: "Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens".

Observe-se, pois, que a aplicação das regras relativas ao regime da comunhão parcial na união estável somente ocorrerá "no que couber", e não em sua integralidade. Na prática, isto gera uma disparidade em relação à proteção jurídica deferida ao patrimônio dos conviventes da união estável em comparação com a tutela jurídica própria do patrimônio no casamento.

Exemplo disSo é o atual entendimento do STJ no sentido de considerar válida a prestação de fiança sem a anuência do companheiro. Nesse sentido, a corte considera inaplicável o enunciado 332 de sua Súmula de Jurisprudência dominante para a fiança prestada pelo convivente em união estável sem a outorga do seu companheiro, de modo que é “possível que os bens indivisíveis sejam levados à hasta pública por inteiro”, reservando-se ao companheiro do executado a metade do preço obtido (AgInt no AREsp 841.104/DF, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 16/06/2016, DJe 27/06/2016).

Aparentemente, a exigência da outorga conjugal teria como pressuposto o “ato jurídico cartorário e solene do casamento que se presume a publicidade do estado civil dos contratantes, de modo que, em sendo eles conviventes em união estável, hão de ser dispensadas as vênias conjugais para a concessão de fiança” (REsp 1299866/DF, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 25/02/2014, DJe 21/03/2014).

Lógica semelhante também parece justificar a dispensa da outorga conjugal para a alienação de imóveis pertencentes aos conviventes em união estável. A imposição da outorga conjugal para a alienação de imóveis deve levar em consideração a proteção dos interesses de terceiros de boa-fé e a segurança do tráfico jurídico, de modo a exigir a publicidade da relação conjugal:

“No casamento, ante a sua peculiar conformação registral, até mesmo porque dele decorre a automática alteração de estado de pessoa e, assim, dos documentos de identificação dos indivíduos, é ínsita essa ampla e irrestrita publicidade. Projetando-se tal publicidade à união estável, a anulação da alienação do imóvel dependerá da averbação do contrato de convivência ou do ato decisório que declara a união no Registro Imobiliário em que inscritos os imóveis adquiridos na constância da união. (...). Contrariamente, não havendo o referido registro da relação na matrícula dos imóveis comuns, ou não se demonstrando a má-fé do adquirente, deve-se presumir a sua boa-fé, não sendo possível a invalidação do negócio que, à aparência, foi higidamente celebrado” (REsp 1.424.275-MT, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 4/12/2014, DJe 16/12/2014).

Além das diferenças no tocante as questões patrimoniais, some-se a isto uma curiosa especificidade quanto ao tratamento jurídico dispensado a união estável na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: a obrigatoriedade de prévia separação de fato por dois anos para a regular constituição de união estável.

A exclusividade quanto às relações afetivas e sexuais demandada para a caracterização da união estável exige que os companheiros não sejam impedidos de casar, ou que não sejam comprometidos com outras pessoas. Nesse sentido, manifestou-se o STJ: “Companheira é a mulher que vive, em união estável, com homem desimpedido para o casamento ou, pelo menos, separado judicialmente, ou de fato, há mais de dois anos, apresentando-se à sociedade como se com ele casada fosse” (REsp 532.549/RS, Rel. Ministro Castro Filho, Terceira Turma, julgado em 02/06/2005, DJ 20/06/2005, p. 269).

Sabe-se que a Emenda Constitucional 66/2010 eliminou a exigência de qualquer tipo de lapso temporal quanto à separação de fato para a concessão do divórcio.

Contudo, verifica-se ainda no âmbito do STJ manifestações pela comprovação de tempo mínimo de separação de fato para a regular constituição de união estável, mesmo após a Emenda Constitucional 66/2010: “A união estável pode ser constituída pelo convívio com pessoa separada de fato há mais de dois anos, porque não existiria impedimento para o casamento” (REsp 973.553/MG, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 18/08/2011, DJe 08/09/2011).

Como se pode verificar, a eventual declaração de inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil por si só não proporcionaria a plena equiparação entre o casamento civil e a união estável, porquanto o tratamento diferenciado alcance outros aspectos. Na semana que vem, na terceira e última parte deste trabalho, findaremos a nossa análise sobre as assimetrias entre a união estável e o casamento.



[1] No mesmo sentido, cf: “A presunção legal de esforço comum foi introduzida pela Lei 9.278/1996, de forma que a partilha dos bens adquiridos anteriormente à entrada em vigor do aludido diploma legal somente ocorre se houver esforço comprovado, direto ou indireto, de cada convivente, conforme a legislação vigente à época da aquisição”. (AgInt no AREsp 604.725/SP, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 01/09/2016, DJe 08/09/2016)


Venceslau Tavares Costa Filho é advogado, doutor em Direito pela UFPE, professor de Direito Civil da UPE e da Faculdade Metropolitana da Grande Recife, diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE.

Revista Consultor Jurídico, 17 de outubro de 2016, 8h00

Assimetria da sucessão em relação à união estável e casamento (parte 1)



Por Venceslau Tavares Costa Filho


No dia 31 de agosto de 2016, o Supremo Tribunal Federal começou a julgar o Recurso Extraordinário 876.694-MG, selecionado em virtude do expediente da Repercussão Geral, e que versa sobre a constitucionalidade da diversidade de regimes sucessórios para o casamento e para a união estável. O ministro Dias Toffoli, prudentemente, pediu vistas dos autos para aprofundar a reflexão sobre a relevante temática, após os votos do ministro-relator, Luis Roberto Barroso, e outros seis ministros integrantes daquela Corte Superior.

Aparentemente, já houve uma tomada de posição do Supremo Tribunal Federal, reputando inconstitucional a regra do artigo 1.790 do Código Civil. Apesar da conclusão pela isonomia jurídica entre as famílias formadas pelo casamento civil e a união estável parecer acertada, parece-me que as premissas sobre as quais ela se apoia são equivocadas. Equivoca-se, a meu ver, quando consagra para o casamento e a união estável uma espécie de regime jurídico que chamarei de “separados, mas iguais”. Ou seja, a união estável e o casamento continuarão a ser reputados como institutos jurídicos diversos, apesar de se atribuir idênticos efeitos quanto a sucessão a causa de morte.

Esta diferenciação, contudo, além de destoar da tradição jurídica luso-brasileira em matéria de Direito de Família, termina por estabelecer uma série de distinções potencialmente discriminatórias entre o casamento e a união estável. O Direito Civil brasileiro é legatário do Direito Romano vulgarizado, do Direito Canônico e do Direito Ibérico. Pode-se dizer que, na antiguidade ocidental, a família era geralmente constituída em razão de certos ritos religiosos ou pela simples convivência.

No Direito Romano, por exemplo, a mulher poderia passar a integrar a família do seu marido caso se submetesse a manus (o poder marital) em virtude da conventio in manum, por uma das seguintes modalidades de constituição familiar: “a) pela confarreatio, que consistia em uma cerimônia religiosa, reservada ao patriciado, com excessivas formalidades, com a oferta a Júpiter de um pão de farinha (panis farreum), que os nubentes comiam, juntos, realizada perante dez testemunhas e perante o sacerdote de Júpiter (flamen Dialis); b) pela coemptio, casamento privativo dos plebeus que implicava à venda simbólica da mulher ao marido, assemelhando-se, pela forma, à mancipatio; e c) pelo usus, que era o casamento pela convivência ininterrupta do homem e da mulher, por um ano, em estado possessório, que, automaticamente, fazia nascer o poder marital, a não ser que, em cada período de um ano, a mulher passasse três noites fora do lar conjugal (trinoctii usurpatio)”.[1]

Isto denota que os romanos admitiam a constituição do vínculo do casamento pela convivência; sem a exigência de maiores formalidades. Ademais, consolidou-se certa tendência entre os estudiosos de Direito Romano (a partir das lições de Bonfante), no sentido defender que o casamento no Direito Romano (desde o período primitivo até Justiniano) exigia apenas dois requisitos: quais sejam a convivência e a intenção marital (affectio maritalis), de modo que o casamento romano reduzir-se-ia a uma “simples relação jurídica de mero fato, que perdura enquanto persistem as condições de fato – convivência e affectio maritalis — de sua existência”.[2]

Assim, era suficiente que um homem e uma mulher, por determinado tempo, convivessem como se fossem casados, independentemente de uma cerimônia civil ou religiosa, para se reputassem submetidos ao regime do casamento. As Ordenações Filipinas (Livro IV, Título XLVI), antiga legislação portuguesa que permaneceu vigendo no Brasil mesmo após a ruptura política em relação a antiga Metrópole, também reconheciam o casamento de fato como espécie de matrimônio apto a gerar efeitos jurídicos: “Outrossim serão meeiros, provando que estiveram em casa teúda e manteúda; ou em casa de seu pai, ou em outra, em pública voz e fama de marido e mulher por tanto tempo, que, segundo Direito, baste para presumir Matrimonio entre elles, posto se se não provem as palavras de presente”.[3]

Os estados norte-americanos do Alabama e do Colorado permanecem reconhecendo o casamento de fato entre as espécies de casamento oficialmente reconhecidas: o Common Law Marriage.[4] Entretanto, após a consumação do Golpe Republicano em 1889, verificou-se a secularização do casamento no Brasil com o advento da Lei do Casamento Civil de 1890.[5] De modo que o direito civil brasileiro deixou de reconhecer o casamento pela convivência duradoura dos cônjuges (casamento de fato) e o casamento religioso, “que, hoje, por si só, sem o posterior registro civil, é considerado concubinato”.[6]

A redução das formas de casamento reconhecidas pelo estado no Brasil ao casamento civil parece refletir aquelas reduções próprias do positivismo, tão ao gosto daqueles que usurparam o poder no Brasil em 1889. A Constituição Brasileira de 1891, nesta toada, reconheceu o casamento civil como única forma de casamento válido. Em obediência ao mandamento constitucional, o Código Civil de 1916 reconheceu que a família legítima poderia ser formada apenas pela via do casamento civil. As Constituições Brasileiras de 1934 (artigo 144), de 1937 (artigo 124), de 1946 (artigo 163) e de 1967 (artigo 167, posteriormente renumerado para artigo 175 em virtude da Emenda Constitucional 1/1969) terminaram por cristalizar a regra segundo a qual a família legítima constitui-se apenas pelo casamento civil.

Em detrimento de uma tradição jurídica de quase 400 anos, o legislador republicano modificou arbitrariamente o tratamento dispensado ao casamento; malferindo a chamada noção estática do direito.[7] É interessante notar, por outro lado, o retrato desenhado quanto a união estável em certa parcela da civilística. A crítica feita por certos civilistas costuma ser no sentido de considerar que o Código Civil de 1916 tutelava apenas as famílias formadas a partir do casamento civil, enquanto relegava as famílias constituídas pela união estável à clandestinidade.

Trata-se, geralmente, de um discurso construído a partir do desprestígio do direito legislado nos códigos “em favor de uma retórica da potencialização da eficácia do texto constitucional”.[8] Contudo, a clausura infligida a união estável decorreu de regras contidas em textos constitucionais brasileiros, como já demonstramos acima. Nem sempre a regulação constitucional de certo instituto jurídico representa um avanço civilizatório, portanto. Na próxima coluna, trataremos das assimetrias jurídicas entre o casamento civil e a união estável.

Post scriptum: O mês de outubro marca a passagem do aniversário de 120 anos da Fundação do Colégio Damas da Instrução Cristã em Recife, uma das mais tradicionais casas de educação do Brasil. Educação não é sinônimo de ensino, qual seja a mera transmissão de conhecimento. A educação passa pelo uso de palavras “mágicas” tais como “bom dia”, “desculpe” e “obrigado”; e o compartilhamento de certos valores. Por haver recebido tais ensinamentos, não tive dúvidas quanto a escolha do educandário dos meus filhos.

Há cerca de uma década, a reconhecida excelência acadêmica das Irmãs da Congregação das Damas da Instrução Cristã levou a criação da Faculdade Damas, que conta com um Curso de Direito recomendado pelo Conselho Federal da OAB e um mestrado acadêmico com corpo docente de nível internacional, a exemplo de Cláudio Brandão, João Maurício Adeodato, Margarida Cantarelli, Graziela Bacchi Hora, Kai Ambos, António Pedro Barbas Homem etc. Assim, deixo registrado o meu preito de gratidão por todas as lições que aprendi (e as que ainda hei de aprender) naquela Casa; e parabenizo pela passagem do aniversário de 120 anos de fundação do Colégio Damas da Instrução Cristã e pelos 10 anos de fundação da Faculdade Damas!

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).



[1] AZEVEDO, Álvaro Villaça. União estável. Antiga forma de casamento de fato. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, n. 90 (1995), p. 94-95.
[2] ALVES, José Carlos Moreira. A natureza jurídica do casamento romano no direito clássico. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, n. 90 (1995), p. 07.
[3] Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4p834.htm Acesso em: 30 de setembro de 2016.
[4] Ao contrário do que imagina o senso comum, o chamado “Common Law Marriage” não é reconhecido na Inglaterra. Cf: http://www.economist.com/news/international/21688381-many-cohabiting-couples-misunderstand-their-legal-status-common-law-marriage-myth Acesso em: 30 de setembro de 2016.
[5] Para os que desejarem obter mais dados sobre o contexto da Lei do Casamento Civil de 1890, pedimos vênia para indicar a leitura de artigo de nossa lavra sobre o projetista da mencionada lei: COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Antônio Coelho Rodrigues: um súdito fiel? Ruptura e continuidade na transição da monarquia para a república no Brasil. Revista de Informação Legislativa, a. 51, n. 203 (jul./set. 2014). Coelho Rodrigues também foi objeto de uma série de colunas nossas: http://www.conjur.com.br/2016-fev-22/direito-civil-atual-critica-coelho-rodrigues-importante-ainda-hoje-dia
[6] AZEVEDO, Álvaro Villaça. União estável. Antiga forma de casamento de fato. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, n. 90 (1995), p. 95-96.
[7] RIPERT, Georges. Les forces créatrices du droit. Paris: L.G.D.J., 1955, p. 01.
[8] CASTRO JR, Torquato. Constitucionalização do direito privado e mitologias da legislação: código civil versus constituição? In: SILVA, Artur Stamford da (org.). O judiciário e o discurso dos direitos humanos. Recife: EDUFPE, 2011, p. 64-65.

Venceslau Tavares Costa Filho é advogado, doutor em Direito pela UFPE, professor de Direito Civil da UPE e da Faculdade Metropolitana da Grande Recife, diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE.

Revista Consultor Jurídico, 10 de outubro de 2016, 10h39

sábado, 29 de outubro de 2016

Responsabilidade civil ambiental e a reparação integral do dano



Por Álvaro Luiz Valery Mirra


No Direito brasileiro, conforme tem sido analisado pela doutrina especializada, a responsabilidade civil ambiental está sujeita a um regime jurídico próprio e específico, fundado nas normas do artigo 225, parágrafo 3º, da Constituição Federal e do artigo 14, parágrafo 1º, da Lei 6.938/1981 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente), diverso, em muitos pontos, do regime comum do Direito Civil e do Direito Administrativo, o que deu à responsabilidade civil por danos ambientais entre nós uma grande amplitude[1].

Entre outros aspectos, esse regime especial de responsabilidade civil está baseado a) na admissão da reparabilidade do dano causado à qualidade ambiental em si mesma considerada, reconhecida como bem jurídico protegido, e do dano moral ambiental[2]; b) na consagração da responsabilidade objetiva do degradador do meio ambiente, ou seja, responsabilidade decorrente do simples risco ou do simples fato da atividade degradadora, independentemente da culpa do agente, adotada a teoria do risco integral[3]; c) na amplitude com que a legislação brasileira trata os sujeitos responsáveis, por meio da noção de poluidor adotada pela Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, considerado poluidor a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, direta ou indiretamente responsável pela degradação ambiental (artigo 3º, IV); e d) na ampliação dos efeitos da responsabilidade civil, que abrange não apenas a reparação propriamente dita do dano ao meio ambiente, como também a supressão do fato danoso à qualidade ambiental, por meio do que se obtém a cessação definitiva da atividade causadora de degradação do meio ambiente.

Dentro desse contexto, em que se verificam a amplitude e a força da responsabilidade civil pelo dano ambiental, impõe-se indagar se tem lugar, também, a aplicação do princípio da reparação integral do dano ambiental.

A noção de reparação aplicável ao dano ambiental traz consigo sempre a ideia de compensação. Isso no sentido de que a degradação do meio ambiente e dos bens ambientais não permite jamais, a rigor, o retorno da qualidade ambiental ao estado anterior ao dano, restando sempre alguma sequela do dano que não pode ser totalmente eliminada. Há, na realidade, sempre algo de irreversível no dano ambiental, o que não significa irreparabilidade sob o ponto de vista jurídico.

Nesse contexto, a reparação do dano ambiental deve invariavelmente conduzir o meio ambiente a uma situação equivalente — na medida do que for praticamente possível — àquela de que seria beneficiário se o dano não tivesse sido causado, compensando-se, ainda, as degradações ambientais que se mostrarem irreversíveis. Daí a incidência do princípio da reparação integral do dano[4].

A reparação integral do dano ao meio ambiente abrange não apenas o dano causado ao bem ou recurso ambiental imediatamente atingido, como também toda a extensão dos danos produzidos em consequência do fato danoso à qualidade ambiental[5], incluindo: a) os efeitos ecológicos e ambientais da agressão inicial a um determinado bem ambiental que estiverem no mesmo encadeamento causal (como, por exemplo, a destruição de espécimes, habitats e ecossistemas inter-relacionados com o meio imediatamente afetado; a contribuição da degradação causada ao aquecimento global); b) as perdas de qualidade ambiental havidas no interregno entre a ocorrência do dano e a efetiva recomposição do meio degradado; c) os danos ambientais futuros que se apresentarem como certos; d) os danos irreversíveis causados à qualidade ambiental, que de alguma forma devem ser compensados; e) os danos morais coletivos resultantes da agressão a determinado bem ambiental[6].

Essa, inclusive, é a orientação firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, em expressivo julgado da lavra do ministro Herman Benjamin, que, inclusive, foi ainda mais longe, ao decidir que a reparação integral do dano ambiental compreende, igualmente, a restituição ao patrimônio público do proveito econômico do agente com a atividade ou empreendimento degradador, a mais-valia ecológica que o empreendedor indevidamente auferiu com o exercício da atividade degradadora (como, por exemplo, a madeira ou o minério retirados ao arrepio da lei do imóvel degradado ou, ainda, o benefício com o uso ilícito da área para fim agrossilvopastoril, turístico ou comercial)[7].

Questão importante na matéria diz respeito à incidência ou não de alguma exceção ao princípio da reparação integral do dano ambiental, por vezes aceita na teoria da responsabilidade civil, para o fim de limitar a amplitude da reparação pretendida, com base, em especial, no exercício de um certo poder moderador dos juízes, movidos por razões de equidade, em disposições legais especiais ou na convenção entre as partes interessadas[8].

Essa indagação é particularmente importante se se considerar o disposto no artigo 944 do Código Civil brasileiro, que depois de firmar a regra da reparação integral do dano, no caput, abriu, no parágrafo único, a possibilidade de o juiz reduzir equitativamente a indenização, se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa do agente e o dano efetivamente causado. A referida norma do Código Civil, como norma geral em tema de responsabilidade civil, teria incidência no âmbito da responsabilidade civil ambiental?

Segundo se tem afirmado, essa exceção ao princípio da reparação integral do dano não tem aplicação à reparação do dano ambiental.

Por um lado, é importante insistir no fato de que a responsabilidade civil ambiental resulta de um sistema próprio e autônomo no contexto da responsabilidade civil, com regras especiais que se aplicam à matéria, em detrimento das normas gerais do Código Civil que com elas não sejam compatíveis. Nesse sentido, a responsabilidade civil por danos ambientais está sujeita a um regime jurídico específico, instituído a partir da Constituição Federal e da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, que não inclui qualquer norma mitigadora da reparação integral do dano, sendo derrogatório, portanto, em tal aspecto, do regime geral do Código Civil.

Por outro lado, nunca é demais lembrar que a responsabilidade civil ambiental tem como fundamento o risco criado pelas atividades degradadoras e não a culpa do degradador, de maneira que configuraria verdadeiro contrassenso se se passasse a levar em conta exatamente a culpa para a delimitação da extensão da reparação pretendida.

Na realidade, limitar a reparação dos danos ambientais em virtude da menor culpa ou da ausência de culpa do degradador significaria, no final das contas, reinserir na responsabilidade objetiva a discussão da culpa do agente, agora não mais para a determinação da responsabilidade civil em si mesma, mas para a definição do montante reparatório, o que o regime instituído a partir da Constituição de 1988 e da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente pretendeu precisamente afastar.

No tocante à intervenção do legislador para o estabelecimento de limites legais à reparação do dano, em especial para favorecer o desempenho de determinadas atividades consideradas de particular relevância para o desenvolvimento do país, é importante observar que no Direito brasileiro tal expediente não foi adotado em relação à reparação de danos ambientais e nem seria a rigor admissível, tendo em vista a indisponibilidade do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, como direito humano fundamental, e do meio ambiente, como bem de uso comum do povo (artigo 225, caput, da CF).

Finalmente, no que se refere à limitação à reparação de danos decorrente da convenção entre os interessados, importa considerar aqui, de maneira especial, a transação.

No âmbito da reparação de danos ambientais, devido ao já referido caráter indisponível do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, como direito humano fundamental, e do meio ambiente, como bem de uso comum do povo (artigo 225, caput, da CF), não se pode a rigor ter como válida a transação, que, inclusive, nos termos da própria lei civil, está restrita a direitos patrimoniais de natureza privada.

Não se ignora aqui a existência de corrente doutrinária que se manifesta já há algum tempo no sentido de admitir a transação nessa matéria, com base, sobretudo, na Lei 7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública), que autoriza a tomada pelos entes públicos legitimados à ação civil pública do denominado “compromisso de ajustamento de conduta às exigências legais” (artigo 5º, parágrafo 6º), que muitos veem como a consagração definitiva no Direito Positivo brasileiro da admissibilidade de transações em tema de direitos e interesses difusos[9].

No entanto, parece que, nessa matéria, têm razão aqueles autores que entendem que o conteúdo possível do denominado compromisso de ajustamento de conduta nada tem a ver com o de uma verdadeira transação, por meio da qual se permitiriam concessões mútuas entre as partes[10].

É interessante observar a respeito que, nos exatos termos da lei, por intermédio do compromisso em questão os degradadores se comprometem a ajustar as suas condutas às exigências legais, não fazendo o legislador referência, em momento algum, à possibilidade de se realizarem transações em relação aos direitos protegidos, por meio de concessões favoráveis aos interesses dos causadores de degradações ambientais. Assim, inclusive, já se pronunciou o Tribunal de Justiça de São Paulo[11].

Nesse passo, porém, vale uma ressalva. É a de que o Superior Tribunal de Justiça, embora como regra não admita a transação em tema de reparação do dano ambiental, já entendeu, em caráter excepcional, como válido, acordo celebrado nos autos de ação civil pública, em que houve reparação não integral do dano, por considerar, naquela hipótese específica, diante das circunstâncias da espécie, como a melhor forma de composição da lesão causada[12].

Em suma, como se procurou demonstrar, a reparação do dano ambiental deve sempre conduzir o meio ambiente a uma situação na medida do possível equivalente àquela de que seria beneficiário se o dano não tivesse sido causado. E, nessa matéria, o princípio da reparação integral do dano tem inteira aplicação, devendo-se levar em consideração não só o dano causado imediatamente ao bem ou recurso ambiental atingido como também toda a extensão dos danos produzidos em consequência do fato danoso à qualidade ambiental, incluindo o dano moral ambiental verificado.

Além disso, é importante ter sempre claro que no atual estágio do Direito Ambiental brasileiro não se admite qualquer limitação à plena reparabilidade do dano ao meio ambiente. Tendo em vista a indisponibilidade do direito protegido, nenhuma disposição legislativa, nenhum acordo entre os litigantes e nenhuma decisão judicial que tenham como finalidade ou efeito o de limitar a extensão da reparação do dano ambiental podem ser considerados legítimos.



[1] BENJAMIN, Antônio Herman V. Responsabilidade civil pelo dano ambiental. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, n. 9, p. 5-52; MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Participação, processo civil e defesa do meio ambiente. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011, p. 441, nota 1199.
[2] STJ – 2ª T. – REsp 1.367.923/RJ – j. 27/8/2013 – rel. min. Humberto Martins; STJ – 2ª T. – REsp 1.198.727/MG – j. 14/8/2012 – rel. min. Herman Benjamin.
[3] STJ – 2ª Seção REsp 1.374.284/MG – j. 27/8.2014 – rel. min. Luís Felipe Salomão – sob o regime do artigo 543-C do CPC/1973; STJ – 4ª T. – AgRg no AgRg no AREsp 153.797/SP – j. 5/6/2014 – rel. min. Marco Buzzi; STJ – 2ª Seção – REsp 1.114.398/PR – j. 8/2/2012 – rel. min. Sidnei Beneti – sob o regime do artigo 543-C do CPC/1973.
[4] MIRRA, Álvaro Luiz Valery Mirra. Ação civil pública e a reparação do dano ao meio ambiente. 2ª ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 314-324; BENJAMIN, Antônio Herman V., op. cit., p. 19; MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 421-424; MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 427-428; LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 229-230; STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade civil ambiental. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 211; LEMOS, Patrícia Faga Iglesias. Direito ambiental: responsabilidade civil e proteção do meio ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 186; PINHO, Hortênsia Gomes. Prevenção e reparação de danos ambientais: as medidas de reposição natural, compensatória e preventivas e a indenização pecuniária. Rio de Janeiro: GZ, 2010, p. 327-330.
[5] CUSTÓDIO, Helita Barreira. Avaliação de custos ambientais em ações judiciais de lesão ao meio ambiente. Revista dos Tribunais, v. 652, p. 26.
[6] MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação civil pública e a reparação do dano ao meio ambiente, cit., p. 315.
[7] STJ – 2ª T. – REsp 1.145.083/MG – j. 27/9/2011 – rel. min. Herman Benjamin.
[8] Sobre todos esses aspectos, ver MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação civil pública e a reparação do dano ao meio ambiente, cit., p. 317 e ss.
[9] MILARÉ, Édis. Direito do ambiente, cit., p. 1465 e ss; MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 316-329; NERY, Ana Luiza de Andrade. Compromisso de ajustamento de conduta: teoria e análise de casos práticos. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 130-164.
[10] RODRIGUES, Geisa de Assis. Ação civil pública e termo de ajustamento de conduta: teoria e prática. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 141-159; AKAOUI, Fernando Reverendo Vidal. Compromisso de ajustamento de conduta ambiental. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 77-81; ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 147-150.
[11] TJ-SP – 9ª Câmara de Direito Público – Ap. Cív. 259.003-5/0-00 – j. 19/2/2003 – rel. des. Ricardo Lewandowski.
[12] STJ – 2ª T. – REsp 299.400/RJ – j. 1º/6/2006 – rel. p/ acórdão min. Eliana Calmon.



Álvaro Luiz Valery Mirra é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito Processual pela USP, especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de Estrasburgo (França), coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.

Revista Consultor Jurídico, 29 de outubro de 2016, 8h05

terça-feira, 19 de abril de 2016

É possível uma responsabilidade civil sem dano? (I)




Por Bruno Leonardo Câmara Carrá


Dizia-se com absoluta tranquilidade até certo tempo atrás: sem um dano, ninguém é civilmente responsável. De fato, dano e responsabilidade civil sempre foram postos sob uma perspectiva lógica de causa e consequência. Por sinal, tomando de empréstimo a teoria das quatro causas de Aristóteles, pode-se perfeitamente afirmar que o dano é a própria causa material da responsabilidade civil. Alguém ousava discordar? Justamente na França, cujo famoso Code Civil de 1804 foi o primeiro a entabular essa verdadeira regula [1] para o direito moderno, houve quem começasse, sim, a fazê-lo. O mais interessante: a ideia ganhou força, avançando teórica e doutrinariamente em vários rincões da Europa e fora dela. De lá chegou até aqui sob a já conhecida expressão responsabilidade civil sem dano.

Tendo tratado desse assunto, pois a simples contradição de termos que o envolve o converte em desafio, dou inicio hoje às minhas contribuições à coluna Direito Civil Atual, coordenada pela Rede de Direito Civil Contemporâneo, com o objetivo de dividir as considerações que já tenho feito sobre o tema, agora, nesse seleto espaço. Agradeço, portanto, aos ministros Luís Felipe Salomão, Antonio Carlos Ferreira e Humberto Martins, que, ao lado dos professores Ignacio Poveda, Otavio Luiz Rodrigues Junior, José Antonio Peres Gediel, Rodrigo Xavier Leonardo e Rafael Peteffi da Silva, coordenam esta coluna eletrônica.

Vejamos, então, o que realmente propõe essa nova doutrina, que surge na forma de Shiva ao prometer, com seu fogo regenerador, a refundação das próprias bases teóricas da responsabilidade civil para o mundo contemporâneo. Antecipo, contudo, que minha posição é francamente contrária a qualquer forma de responsabilidade civil sem dano. Pretendo, assim, refutar e não defender o argumento.

Há, de todo modo, algo bastante positivo nessa pretendida revisão copernicana da responsabilidade civil: chamar a atenção para a hipertrofia dos danos na atualidade e, com isso, fornecer instrumentos jurídicos aptos a controlar sua expansão. É que a ideia de uma responsabilidade sem dano foi motivada fundamentalmente pelo exponencial crescimento deles nas últimas décadas. A isso deve ser somado o aumento também de sua potencialidade lesiva, tornando a vida humana, em suas várias dimensões, presa dos incontáveis riscos.

Não é de hoje, com efeito, que o alargamento dos danos costuma preocupar os teóricos da responsabilidade civil. A evolução do sistema subjetivo para o objetivo, que teve lugar entre o final do Século XIX e começo do XX, em última análise, decorreu também da percepção de sua ocorrência cada vez mais frequente. Expansão a que se associa ainda o problema dos danos ditos anônimos, ou seja, o fato de que as lesões, desde a Revolução Industrial, passaram a ser produzidas não tanto pelo homem e sim pelas máquinas. [2] Essa situação foi agravada com a Revolução Tecnológica que lhe seguiu. Temos, agora, danos ainda mais complexos e insidiosos, como aqueles inerentes às questões ambientais.[3]

Por sinal, foram eles, os danos contra a natureza, que chamaram a atenção para a debacle das estruturas tradicionais de gestão dos riscos. Diante da evidência de que excedem os níveis de interesse pessoal e local, atingindo na maioria das vezes o coletivo, o transfronteiriço e o intergeracional, logo observou-se que as estruturas jurídicas ditas tradicionais não mais conseguiriam impedir a ocorrência do dano ambiental. Essa perda de compasso com a realidade — mais uma evidência de que os fatos andam sempre à frente do Direito — foi descrita por Ulrich Beck. A sociedade de risco (Risikogesellschaft) teorizada pelo sociólogo alemão recentemente falecido colocava em evidência o fato de que os perigos produzidos pela civilização contemporânea não podiam mais ser definidos no espaço ou no tempo: o risco é inevitável, globalizado, umbilicalmente ligado ao nosso modo atual de vida. De consequência, seu gerenciamento, considerando o modelo atual de causa e efeito passou a ser visto como obsoleto.

Nesse cenário, dois instrumentos passaram a protagonizar a gestão dos “novos danos”, a saber, os já bem conhecidos princípios da prevenção e da precaução. Ambos estabelecem mecanismos voltados ao evitar e não ao reparar, mas a ideia de precaução é particularmente mais ampla. A precaução como princípio surge na Alemanha (Vorsorgeprinzip). Vorsorge vem a ser mais do que um simples “dever de cuidado” (sorgfaltspflicht). Ele estabeleceu, assim, um paradigma novo para dar uma proteção ex ante, a interesses de ordem coletiva ou futuros. Um “simples” perigo, ainda que sem provas científicas conclusivas, já estaria a autorizar a adoção de medidas jurídicas para impedir que o próprio dano deixe de acontecer.

Estavam postas, assim, as bases para a criação de um modelo de responsabilidade civil diferente (?). O inédito grau de lesividade, que nos faz vítimas quotidianas de incontáveis fatores de risco, estaria a impor uma radical mudança na noção mesma de responsabilidade (?). A responsabilidade civil não poderia mais ficar limitada à ideia de uma reprimenda a posteriori na forma de reparação civil (?). Sim, foi o que começaram a responder certos autores. Seria imperioso, disseram, que a responsabilidade passasse a disciplinar ex ante os próprios eventos danosos, de forma a preveni-los e não apenas ressarci-los.

Surgia então um modelo de responsabilidade civil diferente, no qual a ameaça de uma dano já permitiria a aplicação de sanções jurídicas que passariam a ser por ela abrangidos. A questão é que tal proposta viria a desconfigura-la, deixando-a irreconhecível. Além de inúmeros inconvenientes práticos, aceita-la significaria na prática refundar ontologicamente essa tradicional disciplina, fazendo incluir nela elementos que histórica e epistemologicamente sempre lhe foram excluídos de maneira reiterada. Uma colchas de retalhos, mais próxima do monstro de Mary Shelley que propriamente desse que é reconhecidamente um dos mais belos e ricos campos do conhecimento jurídico. Disso falaremos melhor na colunas que se seguirão.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFMG).


1 A expressão regula, aqui, é empregada em seu sentido romanista, porém, claro, mais de modo provocativo do que em sentido estrito. Regula, sabemos, era um princípio cardial enunciado nas fontes por meio de uma fórmula curta, mas com força vinculativa inclusive. No conhecido fragmento que Paulo atribui a Sabino (D.50.17.1): “Regula est, quae rem quae est breviter enarrat. Non ex regula ius sumatur, sed ex iure quod est regula fiat.” O que quero dizer, sempre de modo provocativo, repito, foi que os arts. 1382 e 1383 do Código francês veicularam esse princípio cardial da responsabilidade civil e que, por lá, costuma-se anunciar, geralmente, em termos de san dommage subi par la victime, il n’y a pas de responsabilité.


2 O sarcasmo de Lawrence Friedman é invencível no ponto: “A Revolução Industrial adicionou um aumento apavorante nessa dimensão. As novas máquinas tinham uma maravilhosa e sem precedente capacidade para esmagar o corpo humano. As fábricas manufaturavam lesões e logo mortes tanto quanto seus produtos ordinários. Os negócios estavam rendendo lucros; isso era um tentador e lógico fundo por meio do qual os mortos e os lesionados, e suas familias, poderiam ser compensados.” (FRIEDMAN, Lawrence M. Simon. A history of american law. New York: Simon & Schuster, 2005, p. 350).


3 Anderson et alli v. Pacific Gas & Eletric demonstrou como podem ser lentas e ao mesmo tempo fatais as consequências da exposição a agentes químicos produzidos como refugo ou como insumo para a indústria. No caso específico, a contaminação pelo cromo hexavalente demoraria vinte anos para ser descoberta e ensejar a demanda indenizatória, já havendo muitas das vítimas sucumbido aos seus efeitos. O caso ficou famoso mundialmente após virar filme.



Bruno Leonardo Câmara Carrá é juiz federal em Recife (PE), doutor em Direito pela USP com estágio pós-doutoral na Scuola di Giurisprudenza da Universidade de Bolonha. Professor de Direito na Faculdade 7 de Setembro.

Revista Consultor Jurídico, 18 de abril de 2016, 8h00

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Codificação do Direito Civil no século XXI: de volta para o futuro? (parte II)




Por Rodrigo Xavier Leonardo


Em nosso último escrito publicado no Direito Civil Atual, coluna da Rede de Pesquisas de Direito Civil Contemporâneo na ConJur, propusemos uma reflexão acerca da atualidade da profecia da “era da descodificação”, desafiada pelo advento, na América Latina e na Europa, de novos códigos de Direito Civil.

Ao final, deixamos a promessa de tecer algumas linhas acerca do Code Napoleón, recentemente alterado pela Ordonnance 2016-131, aprovada na recentíssima data de 10 de fevereiro de 2016, que encaminhou uma ampla reforma nas matérias do Direito dos Contratos, do regime geral e da prova das obrigações.

Naquela oportunidade, para facilitar a compreensão da magnitude da transformação no Code, reportamos que a Ordonnance 2016-131, entre renumerações, abrogações, modificações e a criação de novos artigos de lei, promoverá aproximadamente 512 alterações no seio daquele que, desde o século XIX, foi o código mais influente na Europa e na América Latina.

Essas reformas do Código Civil, por sua vez, projetaram mudanças em pelo menos 85 outras leis francesas (em especial no Código Comercial e no Código do Consumo).

Tudo isso ocorreu no Code, que ostenta um simbolismo que não se pode menosprezar, afinal de contas, trata-se do código que melhor preenche de significado a “ideia código”, fruto do esforço, centrado no príncipe, de ruptura com o ancién regime para a criação de um novo Direito no amanhecer da modernidade jurídica.

Foi no Code Civil que se verificou “a presunção do primeiro autêntico codificador da história jurídica europeia — de romper com o passado por aquilo que o passado representava sob o aspecto da visão do ‘jurídico’ e da posição do ‘jurídico’ no ‘social’ e no ‘político’. Sob esse perfil, o ‘código’ expressa a forte mentalidade forjada no grande laboratório iluminista e se encontra – enquanto tal — em áspera polêmica com o passado”[1].

Após mais de 200 anos de vigência, o Direito Civil francês já não era propriamente uma projeção do texto do Code, em especial em matéria de obrigações e contratos.

Alguns autores, como Larroumet, chegaram a escrever que as alterações feitas pelos tribunais ao longo desses dois séculos foram tão severas que, de fato, não seria mais possível compreender o Direito das Obrigações e dos Contratos pela leitura dos artigos do Code: a jurisprudência francesa já teria se tornado, nessas disciplinas, a fonte principal[2].

Outros países europeus já haviam modificado codificações mais recentes que a francesa, e os esforços teóricos e políticos para uma reflexão acerca de um Direito europeu dos contratos impulsionavam mudanças.

O que fazer? Pulverizar a legislação em microssistemas? Seccionar o Direito das Obrigações e dos Contratos do Code? A opção francesa foi a de reafirmação do Code, mediante uma ampla reforma.

Esse é o contexto do advento da Ordonnance 2016-131, que entrará em vigor a partir de 1º de outubro de 2016.

Em uma rápida passagem pelas alterações em tema de Direito dos Contratos, pedimos permissão para sublinhar ao leitor algumas das novidades: a) regras específicas a respeito dos contratos concluídos por via eletrônica (artigos 1.125 a 1.127-6 e 1.174 a 1.177); b) alterações no regime de invalidades (artigo 1.178 a 1.185); c) disposições acerca de circunstâncias imprevisíveis supervenientes (artigo 1.195); d) modificações a respeito da denúncia e da resilição nos contratos (artigos 1.210 a 1.215); e) ampla revisão na disciplina da inexecução dos contratos (artigos 1.219 a 1.231-7), entre outros.

Os lindes deste escrito naturalmente são estreitos para uma análise minudente dessa reforma do Code Napoleón. No bojo de tantas sensíveis alterações, pedimos permissão para sublinhar a modificação dos quatros artigos que, originalmente, inseriram no Code a “causa” como um requisito de validade das convenções.

Fizemos essa escolha por diversas razões, dentre elas o fato da “teoria da causa”, nas obrigações e contratos, espelhar muito da cultura francesa, do moralismo no Direito das Obrigações e dos Contratos. Uma revisão da teoria da causa, portanto, além do aspecto técnico, ostenta uma relevância ideológica.

Eis o texto dos artigos 1.108, 1.131, 1.132 e 1.133 do Código Napoleão, adiante reproduzidos em vernáculo, em sua redação original:

“Art. 1.108. Quatro condições são essenciais para a validade de uma convenção: o consentimento da parte que se obriga; a sua capacidade de contratar; um objeto certo que forma a matéria do compromisso; uma causa lícita na obrigação”.

“Art. 1.131. A obrigação sem causa, ou com uma falsa causa, ou com uma causa ilícita, não pode ter qualquer efeito”.

“Art. 1.132. A convenção não deixa de ser válida embora a causa não seja expressa”.

“Art. 1.133. A causa é ilícita quando for proibida por Lei, quando for contrária aos bons costumes ou à ordem pública”.

Esses trechos do Código Napoleão, desde as suas origens, foram objeto de acirradas polêmicas.

Em rápida síntese (e, por isso, perigosa), destacamos a teorização predecessora ao código, encontrada em Domat e Pothier, passando pelas explicações subjetivas do texto legislado (por vezes confundindo a causa com os motivos), encontrando graves obstáculos no movimento anticausalista (sobretudo em M. Planiol), até a estabilização encontrada na ideia de “propósito específico”, de Henri Capitant, para, no ano de 2006, que está tão próximo a nós, alcançarmos a seminal tese de J. Ghestin[3].

A recente obra de Ghestin, inclusive, procurou influenciar diretamente os projetos de reforma do Code Napoleón para rever a teoria da causa no Direito Civil francês contemporâneo[4].

O Direito Civil brasileiro, em sua história, não ficou imune a esse intenso movimento teórico, sobretudo em virtude de autores que, animados pela literatura francesa, procuraram transpor as teorias francesas para o solo nacional.

A esse respeito, Pontes de Miranda, com olhos no Código Civil brasileiro de 1916, advertiu que “os livros franceses que expõem o artigo 1.131 do Código Civil francês, sem o criticar, são perigosos para quem lhes busca elementos para a interpretação do Direito brasileiro, ou de outro sistema jurídico que não tenha sido cópia do francês. Não no temos; nem fomos vítima do grave equívoco histórico que foi, para o Direito francês, o artigo 1.131. O que se chama teoria da causa não é a afirmação de que existe causa, ou de que existem negócios jurídicos causais, e sim que se teceu, com os artigos 1.031, 1.108 e 1.133 do Código Civil francês, uma das mais absurdas teorias de que jamais o Direito sofreu as consequências”[5].

Clóvis Beviláqua, autor do anteprojeto do Código Civil brasileiro de 1916, foi além. Mais que sustentar o equívoco do legislador francês, chegou a sustentar que uma das origens do imbróglio, que os brasileiros deveriam se distanciar, estaria em um atropelo terminológico entre chose (coisa) e causae (causa): “A causa dos contratos, não declarada como razão ou condição deles, deixou de ser considerada pelo Código Civil. A doutrina já fez justiça a esse requisito, que parece ter entrado no Código Civil francês por um equívoco (...) Aludi ao que se refere Huc, em seu Commentaire, sobre a expressão sans cose de Beaumanoir, que supuseram equivaler a sans cause, quando o velho jurista pretendia apenas dizer sans chose, sem objeto. E apreciei o apoio que Domat, o criador da teoria da causa, pretendeu encontrar no Direito Romano. Certamente nas fontes romanas se fala em causa (...) Mas o ponto de vista dos romanos era muito diferente. Desses mesmos textos se vê que os romanos concebiam obrigações sem causa: qui promist sine causa... qui sine causa obligantur. O pensamento, que nesses fragmentos sobressai é o do enriquecimento ilegítimo. Neles não se cogita da formação do contrato. Como bem diz Planiol, a noção de causa é perfeitamente inútil para a teoria dos atos jurídicos”[6].

Pois bem. A partir de 1º de outubro de 2016, nenhum desses artigos do Código dos Franceses — objeto das severas restrições de Beviláqua e Pontes de Miranda —, permanecerá em vigor. A causa, como requisito de validade das convenções, foi extirpada do Code[7].

O legislador francês, ao abandonar o original regramento acerca da causa, buscou reforçar os vínculos contratuais e a segurança jurídica nas operações econômicas.

Com isso, estaria findo o problema da causa nos contratos? Provavelmente, não.

A questão da causa, antes de uma opção de técnica legislativa, é um problema filosófico. Em Teoria do Direito, conforme explicava o professor Antônio Junqueira de Azevedo, o termo enseja pelo menos cinco significados diferentes, com maior ou menor impacto, no plano da validade ou no plano da eficácia. Esses impactos evidentemente serão diferentes diante de um regramento explícito no Código Civil[8]. O silêncio dos códigos, todavia, não afasta o problema da causa.

A opção de Beviláqua de negar à causa a qualidade de requisito explícito de validade dos contratos no Código Civil de 1916, reafirmada e sofisticada no Código Civil de 2002 (por exemplo, pelo artigo 166, III, em substituição ao artigo 90 do Código revogado), nunca afastou o problema da causa do Direito Civil brasileiro.

Basta memorar que alguns dos principais civilistas do século XX dedicaram estudos específicos acerca do tema. Sublinhamos, sem prejuízo de outros, Torquato Castro (da causa no contrato)[9], Couto e Silva (Teoria da Causa no Direito Privado)[10], além das já citadas obras de Junqueira de Azevedo[11] (que, por sua vez, no século XXI, deram frutos em duas teses de doutorado por ele orientadas que, hoje, em Direito nacional, correspondem aos dois livros contemporâneos mais importantes acerca do tema. Em ordem cronológica, citamos a reciprocidade e contrato, de Luiz Renato Ferreira da Silva[12], e a doação com encargo e causa contratual, de autoria de Luciano de Camargo Penteado[13].

A reforma do Código Civil dos franceses faz com que os privatistas novamente voltem os seus olhos para aquela nação europeia que, mais uma vez, presenteia a cultura jurídica mundial com o resultado de um labor sofisticado. Nada de reformas de afogadilho. Certamente, a partir de 1º de outubro de 2016, o Code será menos Napoléon. Mais de dois séculos se passaram... Continuará a ser o código do cidadão francês, agora no século XXI.

Muito dessa reforma no Code se deve a uma atualização a partir da relevante criação jurisprudencial em tema de obrigações e contratos.

Em tema de “teoria da causa”, todavia, podemos encontrar algo além.

No ano de 2012, Denis Mazeaud, ao prefaciar uma nova edição do clássico francês De la cause des obligations, de autoria de Henri Capitant, forneceu algumas pistas para melhor compreender o significado de uma alteração legislativa no tema da causa no Direito dos Contratos e das Obrigações[14].

Segundo Mazeaud — que atualmente preside a Association Henri Capitant des amis de la culture juridique française —, na reforma do Code Civil, duas vertentes decidiriam o futuro da “teoria da causa” na França contemporânea.

De um lado, as correntes adeptas do liberalismo contratual, que sustentavam a suficiência da teoria dos defeitos no consentimento para a proteção dos interesses privados dos contratantes. Para os casos envolvendo vulneráveis, outros meios reconhecidos pela Corte de Cassação seriam mais eficazes. O mesmo poder-se-ia dizer a respeito dos contratos com disposições contrárias à ordem pública e aos bons costumes, nos quais a “causa”, como requisito de validade, seria supérflua.

Por outro lado, as correntes que defendiam a tradição do Direito francês e, também, uma concepção moralista do contrato, continuaram a defender a manutenção da teoria da causa no regramento das obrigações e contratos, ainda que com modificações em relação à redação original no Code.

No que diz respeito à teoria da causa, no embate entre as duas correntes retratadas por Mazoud, percebe-se que a vertente liberal prevaleceu. Retornamos à questão: estaria o problema da causa superado em França? Provavelmente não. A Justiça e a moralidade nos contratos, que a teoria da causa francesa pretendia enfrentar, não desaparecem com a supressão de uma palavra. O problema é reformulado.

Pede-se permissão ao leitor, por fim, para fazer uma singela homenagem. O autor gostaria de dedicar este escrito ao professor Luciano de Camargo Penteado, dileto amigo que guardou uma significativa parte de sua vida ao estudo da Teoria da Causa e nos deixou, ainda muito jovem, no ano de 2015.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT)..



[1] GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis : Boiteux, 2004, p. 106-107.
[2] LARROUMET, Christian. Droit Civil: Les obligations, le contrat. Paris : Economica, 2007, p. 14.
[3] GHESTIN, Jacques. Cause de l`engagement et validité du contrat. Paris: L.G.F.J, 2006.
[4] Mencionamos, neste sentido, as propostas de alterações legislativas apresentadas por GHESTIN, Jacques. Cause de l'engagement et validité du contrat. Paris : L.G.F.J, 2006, p. 903 e seguintes.
[5] PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t.3. Atualizado por Marcos Bernardes de Mello e Marcos Ehrhardt. São Paulo: RT, 2012, p. 141.
[6] BEVILÁQUA, Clóvis. Comentários ao Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro : Francisco Alves , 1959, p.271.
[7] Corresponderá ao artigo 1.108, o artigo 1.128: “Sont nécessaires à la validité d'un contrat: 1° Le consentement des parties; 2° Leur capacité de contracter; 3° Un contenu licite et certain”. O sentido dos artigos 1.131, 1.132 e 1.133 foi completamente alterado e, na mesma posição, encontram-se regras a respeito dos vícios de consentimento, sem qualquer menção à causa.
[8] JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Negócio jurídico e declaração negocial, 1986, p. 121 e seguintes e JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. 2ª ed. São Paulo : Saraiva, 2002, p.152.
[9] CASTRO, Torquato. Da causa no contrato. Recife: Imprensa Universitária, 1966.
[10] COUTO E SILVA, Clóvis. Teoria da causa no Direito Privado. In: FRADERA, Véra. O direito privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 57.
[11] JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Negócio jurídico e declaração negocial, 1986, p. 121 e seguintes e JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 152.
[12] FERREIRA DA SILVA, Luis Renato. Reciprocidade e contrato. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
[13] PENTEADO, Luciano de Camargo. Doação com encargo e causa contratual. 2ª ed. São Paulo: RT, 2012.
[14] MAZEAUD, Denis. Avant-propos. In: CAPITANT, Henri. De la cause des obligations. Paris : Éditions La Mémoire du Droit, 2012, p.II-III.


Rodrigo Xavier Leonardo é advogado e árbitro, doutor em Direito pela USP, professor de Direito Civil nos cursos de graduação e pós-graduação na UFPR e superintende regional (PR) do Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem – Conima.

Revista Consultor Jurídico, 11 de abril de 2016, 8h00

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Lei 13.151/15 estabelece novo regime jurídico paras as Fundações (Parte 2)





É com grande satisfação que se volta a falar para os leitores dessa respeitável coluna Direito Civil Atual, mantida pela Rede de Pesquisa em Direito Civil Contemporâneo.

Como prometido na coluna anterior, retorna-se para tratar das novas regras sobre a atribuição legal do Ministério Público para fiscalização ou velamento das fundações, introduzidas pela Lei federal nº. 13.151, de 28 de julho de 2015, por meio da alteração dos artigos 66, parágrafo 1º, e 69, III, do Código Civil.

Há, assim, duas alterações a serem analisadas: a) a do parágrafo 1º do artigo 66, que retira do Ministério Público Federal a atribuição para fiscalizar as fundações sediadas no Distrito Federal e Territórios, conferindo-a ao Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios; e b) a do inciso III do artigo 67, por meio do qual se fixa um prazo de 45 (quarenta e cinco) dias para que Ministério Público aprecie uma alteração estatutária que lhe seja submetida.

Como se sabe, no Brasil, é de grande relevância a missão conferida ao Ministério Público consistente na atividade de velamento das fundações, incidido sobre todos os momentos de sua existência, inclusive sobre aquele que antecede a sua própria criação [[1]]. A principal razão de ser dessa proteção está na sua própria natureza, ou seja, a fundação é, em essência, uma dotação patrimonial realizada em benefício de uma determinada coletividade ou da própria sociedade [[2]]. As fundações, todas elas, porque manipulam patrimônio destinado ao serviço de terceiros, sujeitam-se ao controle estatal para a proteção dos interesses e direitos dos beneficiários [[3]].

Ocorre que a estrutura do Ministério Público brasileiro, assim como a do Poder Judiciário, é federativa. Com efeito, de acordo com o artigo 128, da Constituição Federal de 1988, há o Ministério Público da União e dos Estados. Entre aqueles primeiros, há o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios. Tanto esses últimos, quanto o Ministério Público Estadual, detêm potencial atribuição de velamento das fundações. Consequentemente, tal atribuição deve ser repartida, em consonância com o modelo constitucional vigente.

Na vigência da primeira codificação brasileira, caso a fundação estivesse situada em apenas um Estado ou no Distrito Federal, ela seria velada pelo órgão do Ministério Público local, ou seja, pelo Promotor de Justiça, Curador de Fundações (caput e parágrafo 1º do artigo 26, do Código civil de 1916). Contudo, caso a fundação estendesse a sua atividade a mais de um Estado ou ao Distrito Federal, ou, se situada no Distrito Federal, ampliasse a sua atuação para outros Estados da Federação, caberia a cada um dos respectivos Ministérios Públicos esse encargo ( parágrafo2º do citado artigo 26). Havia, assim, uma repartição legitima das atribuições [[4]].

O Código Civil de 2002, todavia, por meio do parágrafo 1º do artigo 66, alterou a sistemática do código anterior, ao conferir a atribuição da fiscalização das fundações instituídas no Distrito Federal e Territórios ao Ministério Público Federal. Obviamente que se tratou de um grande equívoco do legislador de 2002. Isso porque o mencionado dispositivo, ignorando que a estrutura do nosso Ministério Público é federativa, afastava o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios de suas atribuições constitucionalmente legítimas.

Diante dessa questão, parte da doutrina se posicionou no sentido em que as atribuições do Ministério Público não poderiam ser criadas por meio de uma lei ordinária (no caso, o Código Civil), mas somente através de uma lei complementar, com base no parágrafo 5º do artigo 128 do Texto Constitucional. Outros, todavia, defendiam a tese da interpretação harmônica entre os conteúdos do Código Civil e da Lompu, segundo a qual a expressão “Ministério Público Federal” deveria ser compreendida como “Ministério Público da União”. Nesse contexto, editou-se o Enunciado 10 da Jornada de Direito Civil, com o entendimento de que, “em razão do princípio da especialidade, o artigo 66, parágrafo 1º, deve ser interpretado em sintonia com os arts. 70 e 178 da Lei Complementar nº. 75/93”.

Essa questão também mereceu a análise do STF, ao julgar a ADI nº. 2.794-8, proposta pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), cuja relatoria coube ao ministro Sepúlveda Pertence. Consoante entendimento firmado pela Augusta Corte, a atribuição fiscalizatória das fundações sediadas no Distrito Federal fica a cargo do Ministério Público do Distrito Federal.

Nos termos do voto do relator, embora tenha sido afastada a tese da inconstitucionalidade formal – sob o argumento de que o artigo 128, parágrafo 5º, da Constituição Federal não assegura uma reserva absoluta à lei complementar para conferir atribuição ao Ministério Público –, acabou por ser declarada a inconstitucionalidade material o parágrafo 1º do artigo 66 do Código Civil de 2002, ao fundamento de que é do próprio sistema da Constituição que se infere a identidade substancial entre a esfera de atribuições do Ministério Público do Distrito Federal e aquelas confiadas ao MP dos estados, as quais, à semelhança do que acontece com o Poder Judiciário, apuram-se por exclusão das atribuições que expressamente correspondem ao Ministério Público Federal, ao do Trabalho e ao Militar.

Enfim, embora o conflito já estivesse devidamente pacificado no julgamento da ADI nº. 2.794-8, a Lei federal nº. 13.151, de 28 de julho de 2015, por meio do seu artigo 2º, houve por bem alterar o dispositivo em questão, para o fim de conferir a atribuição da supervisão das fundações que funcionem no Distrito Federal e Territórios ao próprio MPDFT. Pode-se afirmar, então, que não houve qualquer mudança substancial no direito vigente, conquanto não se ignore que a alteração em voga buscou corrigir aquilo que foi um grande equívoco do legislador de 2002, visando, assim, a manter a coerência do sistema.

Novidade mesmo apenas se vê no artigo 3º da mencionada Lei federal nº. 13.151, de 28 de julho de 2015, que atribuiu nova redação ao inciso III do artigo 69 do Código Civil, para o fim de ali fixar um prazo de 45 (quarenta e cinco) dias para que os membros do Ministério Público se manifestem a respeito de eventuais alterações estatutárias que venham a ser requeridas pelas fundações interessadas.

O tema comporta temperamentos. No direito comparado, observam-se variações quanto à possibilidade de alteração do estatuto da fundação, não apenas quanto à forma em si, mas também quanto ao conteúdo.

No direito alemão, por exemplo, admite-se, excepcionalmente, a transformação do fim fundacional, quando se demonstre impossível o alcance dos objetivos originários ou quando se ponha em risco o bem comum, devendo-se buscar, em qualquer dos casos, a preservação do desejo do instituidor e que as rendas do patrimônio da fundação sejam mantidas, quanto possível, no mesmo círculo de favorecidos ( parágrafo 87 do BGB) ([5]). De maneira semelhante, opera-se no direito português (artigos 189 e 190 do Código Civil português).

No Brasil, a alteração dos estatutos de uma fundação é algo também possível, embora de maneira não tão ampla.

Admite-se alteração desde que haja necessidade de se adaptar os fins originariamente previstos às novas circunstâncias, visando-se, assim, ao aperfeiçoamento da estrutura e das regras da entidade para que ela possa melhor atender a esses objetivos. Adaptam-se, assim, as atividades-fins para a consecução da finalidade maior [[6]]. Em outras palavras, as alterações, ainda quando necessárias, não poderão contrariar ou desvirtuar a finalidade da fundação, fixada no ato de instituição, encontrando aí um limite de ordem substancial.

Há ainda mais dois requisitos, de ordem formal, quais sejam: as alterações propostas devem ter sido aprovadas por dois terços dos integrantes do órgão incumbido da gestão e representação da fundação; e necessitam ser submetidas ao órgão competente do Ministério Público, que vela pela fundação, para que as aprove.

Aprovadas as alterações, serão registradas na forma legal. Caso sejam recusadas pelo órgão do Ministério Público, poderão ser supridas pelo juiz competente, mediante requerimento da parte interessada, nos termos do inciso III, do artigo 67, do Código Civil, mediante procedimento específico previsto nos artigos 1200 a 1204 do CPC-73.

Esse era o cenário legislativo vigente até então. A novidade agora é que, de acordo com a nova redação do inciso III do artigo 69 do Código Civil, dada pela Lei federal nº. 13.151, de 28 de julho de 2015, haverá um prazo para essa manifestação de aprovação ou desaprovação do Ministério Público acerca das alterações propostas, ou seja, caso o Promotor de Justiça Curador das Fundações não se manifeste sobre o pedido de alteração dentro do prazo de 45 dias, o seu silêncio poderá ser suprido pelo juiz, a requerimento do interessado.

Alem disso, o novo Código de Processo Civil – editado pela Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 –, diversamente do CPC-73, houve por bem não trazer quaisquer disposições acerca do procedimento para a aprovação e alteração dos estatutos das fundações junto ao Ministério Público. Nada disse, tampouco, a respeito dos prazos para que o Ministério Público manifestasse sobre tais pedidos, revogando os dispositivos do código anterior que tratavam do assunto (artigo 1201 do CPC-73).

Limitou-se, assim, o CPC-15 a indicar as hipóteses de suprimento judicial a respeito da aprovação ou alteração dos estatutos das fundações, sempre que o Ministério Público denegar previamente o pedido ou condicionar a aprovação dos estatutos às adaptações que entender pertinentes (artigo 764, I), praticamente repetindo as hipóteses já previstas no Código Civil de 2002 (artigos 65 e 67, III).

Logo, a partir da nova redação dada ao referido artigo 67, inciso III, do Código Civil, o suprimento judicial, que era hipótese já prevista para os casos de denegação da alteração estatutária, poderá também ser utilizado nas hipóteses de silêncio ou falta de manifestação do Ministério Público, depois de transcorrido o referido prazo de 45 dias.

Na prática, caso não se concorde com a postura adotada pelo órgão do Ministério Público – seja ela no sentido de denegar previamente o pedido de alteração, de condicioná-lo a reparos, ou simplesmente de silenciar-se por um prazo superior a 45 dias –, poderá o interessado valer-se do pedido de suprimento judicial, cujo rito a ser adotado será o dos procedimentos de jurisdição voluntária (previstos nos artigos 719 a 725 do CPC-15).

Trata-se de alteração louvável, pois busca dotar essa manifestação da necessária celeridade, considerando-se a eventual necessidade de uma rápida adaptação das fundações às constantes alterações regulatórias e econômicas, sem que, entretanto, abra-se mão do papel fiscalizador do Ministério Público, este que é considerado fundamental para garantir a lisura e a regularidade do funcionamento das fundações.

Propõe-se, ao final, uma reflexão: note-se que as alterações no regime das fundações, trazidas pela Lei federal nº. 13.151, de 28 de julho de 2015, aqui sumariamente apresentadas, ainda quando louváveis e tragam alguma repercussão prática, revelam-se tímidas. Com efeito, parece ser cada vez mais premente a necessidade de se aprofundar as discussões quanto à necessidade crescente de estabelecimento de controle dessas entidades, por parte da sociedade, mas sem descurar da imprescindibilidade de oferecer maiores estímulos ao desenvolvimento do denominado terceiro setor. Há um fino equilíbrio nessa balança.

Nesse sentido, parecem alvissareiras as possibilidades trazidas pela recente entrada em vigor da Lei nº. 13.019/2014, que vem sendo denominada de Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, mas que, apesar do nome, trata apenas do relacionamento entre a Administração Pública e as instituições sem fins lucrativos.

Soam como avanços, por exemplo, a questão da segurança jurídica, conferida pelo caráter nacional da referida lei, e o aprimoramento do delicado relacionamento entre essas entidades e o Poder Público, por meio da criação de instrumentos jurídicos próprios de fomento e colaboração, do favorecimento à agregação de projetos e atuação das OSC em rede, da prestação de contas simplificadas, dentre muitas outras. Mas é importante ter em mente que a lei não regula uma série de outros aspectos relativos às referidas organizações da sociedade civil e que merecem ainda maiores atenções, em especial a necessidade do incentivo ao aporte de recursos, no denominado terceiro setor, pela iniciativa privada.

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).

[1] MELLO FILHO, Jose Celso de. Notas sobre as fundações. Revista de Direito Privado. Ano 14, vol. 53, jan.-mar./2013, p. 274.

[2] TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord). Comentários ao novo código civil: das pessoas: (Arts. 1º ao 78), volume I. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 1046-1051.

[3] FAGUNDES, Miguel Seabra. Fundações. Âmbito de atuação do Ministério Público em sua defesa – interpretação do art. 26 do Código Civil – Afastamento imediato de seus administradores – legalidade da providência, tanto como medida de natureza administrativa, como medida de caráter judicial preventivo. Revista dos Tribunais. São Paulo. 50(304):58-77. Fevereiro/61, p. 59.

[4] PAES, José Eduardo Sabó. O Ministério Público e o velamento às fundações que estendam suas atividades a mais de um estado ou ao Distrito Federal. In: Âmbito Jurídico, maio de 2001, disponível em:http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5760, Acesso em set. de 2015.

[5] ENNECERUS, Lugwig; KIPP, Theodor; et WOLFF, Martin. Tratado de Derecho Civil, trad. Blas Pérez Gonzalez e José Alguer, Parte Geral, I, 2ª. Ed. Barcelona: Bosh, 1953, 1º Tomo, p. 516.

[6] CASTRO, Lincoln Antonio de. O ministério público e as fundações de direito privado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1995, p. 22.



Antonio Lago Júnior é mestre em Direito pela UFBA, professor de Direito Civil nos cursos da Universidade Salvador (Unifacs), advogado e procurador do estado da Bahia.



Revista Consultor Jurídico, 30 de novembro de 2015, 8h00

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...