Mostrando postagens com marcador DEMOCRACIA. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador DEMOCRACIA. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O PODER JUDICIÁRIO NO REGIME DEMOCRÁTICO



O Poder Judiciário no regime democrático



Artigo publicado no Scielo. Clique aqui para citar a referência.

Fábio konder Comparato





NA IDADE MODERNA, SÓ se pode considerar democrático o regime político fundado na soberania popular, e cujo objetivo 'último consiste no respeito integral aos direitos fundamentais da pessoa humana. A soberania do povo, não dirigida à realização dos direitos humanos, conduz necessariamente ao arbítrio da maioria. O respeito integral aos direitos do homem, por sua vez, é inalcançável quando o poder político supremo não pertence ao povo.

O Poder Judiciário, como órgão de um Estado democrático, há de ser estruturado em função de ambas essas exigências. Ressalte-se, contudo, que, diferentemente dos demais poderes públicos, o Judiciário apresenta uma notável particularidade. Embora seja ele, por definição, a principal garantia do respeito integral aos direitos humanos, na generalidade dos países os magistrados, salvo raras exceções, não são escolhidos pelo voto popular.

Na verdade, o fator que compatibiliza o Poder Judiciário com o espírito da democracia (no sentido que Montesquieu conferiu ao vocábulo) é um atributo eminente, o único capaz de suprir a ausência do sufrágio eleitoral: é aquele prestígio público, fundado no amplo respeito moral, que na civilização romana denominava-se auctoritas; é a legitimidade pelo respeito e a confiança que os juízes inspiram no povo. Ora, essa característica particular dos magistrados, numa democracia, funda-se essencialmente na independência e na responsabilidade com que o órgão estatal em seu conjunto, e os agentes públicos individualmente considerados, exercem as funções políticas que a Constituição, como manifestação original de vontade do povo soberano, lhes atribui.

Se quisermos, portanto, verificar quão democrático é o Poder Judiciário no Brasil, devemos analisar a sua organização e o seu funcionamento, segundo os requisitos fundamentais da independência e da responsabilidade.

São as duas partes em que se divide o presente texto.



Independência

Esclareçamos, desde logo, o sentido técnico do termo. Diz-se que o Poder Judiciário em seu conjunto é independente, quando não está submetido aos demais Poderes do Estado. Por sua vez, dizem-se independentes os magistrados, quando não há subordinação hierárquica entre eles, não obstante a multiplicidade de instâncias e graus de jurisdição. Com efeito, ao contrário da forma como é estruturada a administração pública, os magistrados não dão nem recebem ordens, uns dos outros.

A independência funcional da magistratura, assim entendida, é uma garantia institucional do regime democrático. O conceito de garantia institucional foi elaborado pela doutrina publicista alemã à época da República de Weimar, para designar as formas de organização dos Poderes Públicos, cuja função é assegurar o respeito aos direitos subjetivos fundamentais, declarados na Constituição1.

Desde a nossa primeira Constituição republicana, seguimos, em matéria de organização dos Poderes Públicos, o modelo original norte-americano, cujo pressuposto ideológico foi o cuidado em delimitar e restringir a competência do Poder Legislativo, o qual teria, na opinião dos pais fundadores dos Estados Unidos, uma inclinação natural ao abuso de poder. "O corpo legislativo", escreveu Madison, "estende por toda parte a esfera de sua atividade, e engole todos os poderes no seu turbilhão impetuoso"2.

Acrescentou que o Poder Executivo deve ser temido num regime monárquico, ou mesmo quando o povo exerce diretamente a função legislativa.


Mas numa república representativa", ponderou, "em que a magistratura executiva é limitada, tanto na extensão, como na duração dos seus poderes, e onde o poder de legislar é exercido por uma assembléia cheia de confiança nas suas próprias forças, pela certeza que tem da sua influência sobre o povo; [...] em tal estado de coisas, é contra as empresas ambiciosas desse poder que o povo deve dirigir os seus ciúmes e esgotar todas as precauções3.

Acontece que em nosso país – como na generalidade das nações latino-americanas, de resto – a tradição colonial moldou os costumes políticos no sentido da máxima concentração de poderes na pessoa do Chefe de Estado. Ao adotarmos, pois, o regime presidencial de governo, em que o Chefe de Estado é, ao mesmo tempo, Chefe de Governo, nada mais fizemos do que criar, sob pretexto de uma reprodução do modelo norte-americano, um presidencialismo exacerbado.

Já durante o regime monárquico, aliás, a predominância inconteste da vontade imperial sobre todos os órgãos do Estado, e até mesmo acima da vontade popular, pelo exercício do Poder Moderador, era bem conhecida. Como frisou o Marquês de Itaboraí (Rodrigues Torres), "o Imperador reina, governa e administra". Sua Majestade concentrava em suas mãos todas as prerrogativas do Poder Executivo, o qual, como reconheceu Joaquim Nabuco, sempre foi onipotente, sendo esta onipotência, em suas palavras, "o traço saliente do nosso sistema político"4.

Não era, assim, de admirar que durante todo o período imperial o Judiciário se apresentasse como fiel servidor do governo. Ele era "uma mola da máquina administrativa", como reconheceu sem disfarces o Visconde de Uruguai5. Nas palavras candentes de José Antonio Pimenta Bueno, o futuro Marquês de São Vicente e o mais autorizado constitucionalista do período imperial, "o governo é quem dá as vantagens pecuniárias, os acessos, as honras e as distinções; é quem conserva ou remove, enfim quem dá os despachos não só aos magistrados, mas a seus filhos, parentes e amigos"6.

A Constituição de 1891, procurando corrigir tais abusos, determinou, em seu art. 57, que "os juízes federais são vitalícios e perderão o cargo unicamente por sentença judicial". Acrescentou que "os seus vencimentos serão determinados por lei e não poderão ser diminuídos". Mas como a Constituição só se referiu, aí, aos juízes federais, alguns Estados resolveram não observar essas garantias em relação aos seus magistrados. O Supremo Tribunal Federal, chamado a se pronunciar sobre o assunto, julgou que as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade dos vencimentos da magistratura deviam ser observadas, como princípio constitucional, por todos os Estados da federação; o que veio, afinal, a ser consagrado pela reforma constitucional de 1926. No entanto, como tais garantias não se consideravam aplicáveis aos juízes temporários, essa escapatória foi largamente aproveitada, não só pela União, como também pelos Estados federados.

Consolidou-se, com isto, o costume político, segundo o qual as relações entre o Executivo e os demais órgãos estatais não são de potência a potência, mas de quase vassalagem destes para com aquele; ou, mais exatamente, de submissão geral à pessoa do Presidente ou do Governador de Estado; o que representa, de certa forma, a transposição na esfera estatal do tradicional relacionamento do coronel do interior com os seus agregados e capatazes7. Da mesma forma, entre o povo e o Estado, personificado na figura do chefe do Executivo, quase nunca se estabelece uma relação de cidadania, mas sim uma situação de dependência ou proteção pessoal, análoga à que existe entre pais e filhos, ou entre padrastos e enteados. O povo não foi educado a exercer direitos e a exigir justiça, mas tem sido habitualmente domesticado a procurar auxílios e favores.

É isto o que tende a falsear completamente posição da magistratura judiciária em nossa organização de Poderes. É ingênuo acreditar que a evolução constitucional pôs, finalmente, juízes e tribunais ao abrigo da avassaladora hegemonia governamental.

Se quisermos, portanto, garantir a independência do Poder Judiciário, precisamos, sobretudo, protegê-lo contra as indevidas incursões do Executivo em seu território.

É nesse sentido que passo a alinhar algumas sugestões de reforma.



Preenchimento de cargos nos Tribunais

O Supremo Tribunal Federal deveria ser composto por quinze Ministros, um terço dos quais por indicação do próprio Tribunal, o outro terço indicado pelo Ministério Público Federal e o último terço de indicação da Ordem dos Advogados do Brasil. As indicações seriam sempre feitas em listas tríplices, e a escolha dos Ministros competiria ao Senado Federal, em votação com o quorum qualificado de dois terços dos senadores.

No Superior Tribunal de Justiça, manter-se-ia a mesma composição prevista no art. 104, parágrafo único, da Constituição, mas a designação dos Ministros incumbiria também ao Senado Federal, deliberando com o mesmo quorum qualificado que se acaba de indicar.

Igualmente para o Tribunal Superior do Trabalho, manter-se-ia a mesma composição determinada no art. 111, § 1º, da Constituição8, mas as indicações seriam feitas em listas tríplices pelo próprio Tribunal, o Ministério Público do Trabalho e a Ordem dos Advogados do Brasil, com a escolha definitiva sendo feita pelo Senado Federal, nas mesmas condições acima indicadas.

Quanto aos demais tribunais federais e os tribunais dos Estados e do Distrito Federal, quatro quintos dos seus integrantes deveriam ser escolhidos dentre Juízes de Direito, de modo alternado, por antigüidade e por concurso público, e o quinto restante na forma do disposto no art. 94 da Constituição, ou seja, por membros do Ministério Público, com mais de dez anos de carreira, e de advogados de notório saber jurídico e de reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional, todos eles indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes, sendo que, recebidas as indicações, o tribunal formará lista tríplice, a ser submetida ao Senado Federal. Seria, assim, abolido o critério de escolha por merecimento, o qual enseja uma inevitável margem de arbítrio por parte dos tribunais de justiça.



Emendas constitucionais reguladoras da organização, das prerrogativas e do funcionamento do Judiciário

Em se tratando de emendar a Constituição para regular a organização e o funcionamento dos Poderes Públicos, bem como para a fixação das prerrogativas dos seus agentes, a proposta deveria ser submetida a referendo popular. Nada é mais característico da consolidada usurpação da soberania do povo, estabelecida entre nós, do que a facilidade com que o impropriamente chamado poder constituinte derivado se atribui a prerrogativa de decidir, em definitivo, assuntos de tanta relevância para a vida democrática.

Em relação ao Judiciário, porém, essa exigência ainda não é bastante. É que, ao contrário dos demais Poderes, ele tem estado, pela tradição constitucional, alheio ao procedimento de emenda ou reforma da Constituição. Entendo que, dada a posição relativamente inferior do Judiciário em relação aos demais Poderes do Estado no equilíbrio constitucional de competências, é indispensável estabelecer a regra de que toda e qualquer proposta de emenda à Constituição, relativa ao Poder Judiciário e à magistratura nacional, seja de iniciativa exclusiva do Supremo Tribunal Federal, analogamente ao que estabelece a Constituição no que concerne ao Estatuto da Magistratura (art. 93).



Autonomia financeira do Poder Judiciário e fixação dos subsídios da magistratura

A Constituição Federal, em seu art. 99, estabeleceu a autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário. Isto não impediu, contudo, que o Executivo, pressionado pelo Fundo Monetário Internacional, e com a cumplicidade do Congresso Nacional, promulgasse a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 4/5/2000), que fixou limites intransponíveis para as despesas de pessoal do Judiciário, sem que este houvesse participado oficialmente do processo de elaboração da lei.

O adequado funcionamento da Justiça para a proteção efetiva da dignidade humana, princípio supremo da ordem jurídica, não se compadece, claro está, com essa visão fiscalista da coisa pública. É indispensável e urgente iniciar uma vigorosa campanha nacional para a fixação, por lei complementar, de um número mínimo de juízes de primeira instância, na União, nos Estados e no Distrito Federal, em função do número efetivo de habitantes, e de uma correspondente proporção mínima de magistrados dos tribunais de segunda instância, em relação aos juízes de primeira instância, bem como de um número mínimo de membros dos tribunais superiores, em relação aos integrantes dos tribunais de segunda instância. Nunca é demais lembrar que a prestação de justiça é a mais nobre das atividades-fins do Estado, não podendo, portanto, em hipótese alguma, subordinar-se à regra instrumental de balanceamento das contas públicas.

Quanto à fixação dos subsídios da magistratura, dever-se-ia partir, no plano federal, da regra de que os subsídios dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, do Presidente e do Vice-Presidente da República, bem como dos Deputados Federais e Senadores seriam fixados conjuntamente pelos representantes desses três Poderes.

Competiria, em seguida, ao Supremo Tribunal Federal fixar os subsídios dos magistrados dos tribunais superiores, dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais e Juízes Eleitorais, dos Tribunais e Juízes do Trabalho, e dos Tribunais e Juízes Militares Federais. No plano estadual, haveria análogo procedimento, respeitados os limites máximos fixados pela Constituição.



Isenção política dos magistrados

Ultimamente, tem-se vulgarizado a prática de magistrados, sobretudo dos tribunais superiores da República, fazerem pronunciamentos públicos sobre assuntos de governo, sem qualquer ligação com os interesses da magistratura nacional.

Será ainda preciso relembrar que tais atitudes contribuem fortemente para destruir o prestígio público e a necessária presunção de imparcialidade que é apanágio dos magistrados? Quem não percebe, afinal, que, depois de pronunciar-se publicamente, fora do contexto de um litígio judicial, contra ou a favor da atuação de governantes ou parlamentares, o magistrado perde a isenção para julgar, eventualmente, causas em que esses governantes ou parlamentares se achem, direta ou indiretamente, envolvidos?

Faz-se mister, portanto, acrescentar à vedação constante do art. 36, inciso III, da atual Lei Orgânica da Magistratura Nacional9, mais uma, concernente a pronunciamentos públicos, feitos por magistrados fora dos processos judiciais, sobre políticas de governo, ou atos de quaisquer agentes públicos, ressalvada a crítica impessoal manifestada em obras doutrinárias ou no exercício do magistério.



Responsabilidade

A essência do regime republicano, como a etimologia indica, é o fato de que o poder político não pertence, como um ativo patrimonial, aos governantes ou agentes estatais, mas é um bem comum do povo. Res publica, res populi, dizia-se em Roma10. É só neste preciso sentido que se pode falar em poder público.

Ora, o corolário lógico desse princípio fundamental é a necessária correlação existente entre poder e responsabilidade. Quanto maior o poder, maior a responsabilidade, entendida esta como o dever que incumbe ao detentor do poder, em nome de outrem, de responder pela forma como o exerce.

A responsabilidade desdobra-se, na verdade, em duas relações: a correspondente ao dever de prestar contas (que na língua inglesa denomina-se accountability) e a relação de sujeição às sanções cominadas em lei pelo mau exercício do poder (liability).

Numa república democrática, os controles institucionais de abuso de poder pelos órgãos do Estado são de duas espécies: o horizontal, ligado ao mecanismo da separação de Poderes, e o vertical, fundado na soberania popular. Na verdade, a democracia é o regime político no qual ninguém, nem mesmo o povo soberano, exerce um poder absoluto, sem controles. O poder soberano do povo só pode ser exercido, legitimamente, no quadro da Constituição. E é, justamente, ao Poder Judiciário que incumbe a magna função de interpretar os limites constitucionais dentro dos quais há de ser exercida a soberania popular.

Se assim é, se o próprio povo soberano tem a sua ação limitada nos termos da Constituição, com maioria de razão deve a atuação do Judiciário ser submetida a uma fiscalização permanente de sua regularidade. Ora, é forçoso reconhecer que os controles institucionais da ação do Judiciário, em nossa sociedade, são muito frouxos e mesmo, em certos setores, praticamente inexistentes.

Comecemos pelo controle horizontal.

Se se exige, com razão, total independência do Judiciário no julgamento dos demais Poderes Públicos à luz dos mandamentos constitucionais e legais, não se compreende por que o corpo de magistrados não deva se submeter, por igual, a um controle externo do seu comportamento por outros órgãos, para efeito de apuração de suas responsabilidades, tanto no nível penal, quanto no civil e no disciplinar.

É falacioso objetar que a fiscalização ab extra da ação dos magistrados importaria na perda de sua independência de julgamento e do seu poder disciplinar interno. Em primeiro lugar, porque esse exame não implica, em hipótese alguma, uma revisão das decisões processuais ou de mérito, dadas por juízes e tribunais. Ele tem por objeto, de um lado, o modo como os magistrados se desempenham no exercício dessa sua função privativa e, de outro lado, a sua conduta pessoal fora dessa atuação funcional. Em segundo lugar, porque o controle externo não pode jamais abranger a competência de julgamento, assim como a censura judicial dos atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo não significa a assunção pelo Judiciário das funções privativas desses ramos do Estado. Em terceiro lugar, porque um mecanismo de exame externo do funcionamento do Judiciário não acarreta a abolição do poder disciplinar interno dos órgãos judiciais, mas na verdade o complementa.

Atualmente, existe um poder censório geral do Judiciário, atribuído ao Conselho Nacional da Magistratura (Lei Orgânica da Magistratura Nacional – Lei Complementar nº 35, de 14/3/1979). Mas esse órgão, constituído por sete Ministros do Supremo Tribunal Federal, tem sido de todo inoperante, pois não dispõe, como é óbvio, da menor condição de exercer a fiscalização do desempenho funcional de todos os juízes e tribunais do país.

Sem dúvida, o mais adequado, numa democracia, é ter a fiscalização não judicial dos Poderes do Estado exercida por um órgão de representação popular. Entre nós, porém, nenhum dos órgãos legislativos existentes apresenta condições aceitáveis para desempenhar essa função. O Senado Federal não representa o povo brasileiro, mas sim os Estados federados e o Distrito Federal. E quanto à Câmara dos Deputados e às Assembléias Legislativas, elas mal dão conta das funções que lhes foram atribuídas pela Constituição, e não suportariam, como é evidente, assumir mais outra, de tão grande complexidade.

O ideal seria instituir um outro órgão de representação popular, tanto no nível federal, quanto no estadual, com a competência exclusiva de exercer todas as funções de fiscalização e inquérito atualmente atribuídas aos órgãos legislativos, além da supervisão permanente do funcionamento do Poder Judiciário.

A segunda melhor solução seria instituir, na União, em cada Estado e no Distrito Federal, um órgão de controle, composto de agentes das funções essenciais da Justiça, a saber, o Ministério Público e a advocacia (nesta incluídas a advocacia e a defensoria públicas). Esse órgão teria a incumbência de verificar o cumprimento, por todos os magistrados, inclusive os Ministros do Supremo Tribunal Federal, dos deveres funcionais declarados em lei (atualmente, arts. 35 e seguintes da Lei Orgânica da Magistratura), e de encaminhar as conclusões de seus inquéritos às autoridades competentes para a aplicação das sanções legais.

Nessa ordem de idéias, não parece adequado que, em matéria de crimes comuns, os Ministros do Supremo Tribunal Federal mantenham o privilégio de serem julgados pelos seus pares. Poderse-ia, assim, cogitar da criação de um órgão judiciário especial para tais casos, composto pelos cinco Ministros mais antigos em atuação no Superior Tribunal de Justiça.

No tocante ao controle vertical da atuação da magistratura, convém recordar que a Carta Política do Império, em seu art. 157, instituiu uma ação criminal contra os juízes de direito, "por suborno, peita, peculato e concussão", a qual poderia ser intentada "dentro de ano e dia pelo próprio queixoso, ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo estabelecida na Lei".

Sem dúvida, essa espécie de ação popular criminal, limitada exclusivamente à hipótese em que o réu é magistrado, não mais se justifica nos dias atuais. Conviria, no entanto, criar uma ação popular criminal subsidiária, mediante adaptação do disposto no art. 5º, inciso LIX, da Constituição Federal11, toda vez que o réu seja um agente público. Em tal hipótese, a ação penal subsidiária deveria ser admitida, ainda quando o representante do Ministério Público se recusasse, expressamente, a oferecer a denúncia.

Por outro lado, não se deve nunca esquecer de garantir cumpridamente a todos os jurisdicionados o respeito ao direito fundamental de obter, no Judiciário, um julgamento isento.

Nesse sentido, proponho a adoção de uma providência processual simples, a fim de resolver o problema – assaz freqüente, aliás – de os jurisdicionados se encontrarem efetivamente privados do direito de serem julgados de forma imparcial na comarca em que são domiciliados. Suponha-se a hipótese de um juiz de direito que, em região de agudo conflito agrário, coloque-se objetivamente – de modo intencional ou não, pouco importa – do lado dos proprietários rurais, e se empenhe em distribuir, mais a torto que a direito, condenações criminais a mancheias contra todos os que atuem, direta ou indiretamente, a favor da reforma agrária; além de julgar sistematicamente improcedentes as ações possessórias e reipersecutórias intentadas por essas mesmas pessoas. As regras processuais concernentes à suspeição não têm aí aplicação, em princípio, pois não se consegue provar algum interesse pessoal do magistrado na solução das lides submetidas à sua decisão.

Para a solução de casos dessa natureza, poder-se-ia cogitar de atribuir a qualquer parte em juízo, em qualquer espécie de processo, o direito de obter o desaforamento do feito para o juízo que vier a ser designado pelo tribunal de segunda instância. Seria um direito potestativo, exercitável, portanto, sem que o seu titular tenha que alegar motivo algum. A freqüência com que for exercido esse direito, em determinado juízo, serviria como indício de que o magistrado já não goza da indispensável confiança dos jurisdicionados, havendo perdido a sua auctoritas funcional.

Eis aí as sugestões que me parecem importantes e oportunas oferecer à consideração geral, como subsídio aos trabalhos de aperfeiçoamento da organização do Poder Judiciário em nosso país.



Notas

1 Sobre o assunto vejam-se, na doutrina brasileira, Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 7ª ed., Malheiros Editores, capítulo 15, e na doutrina alemã contemporânea, Klaus Stern, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, t. III/1, Münch, Verlag C. H. Beck, 1988, 68.

2 The Federalist, ensaio nº 48, New York, The Modern Library, p. 322.

3 Idem, pp. 322-323.

4 Um Estadista do Império, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, p. 239.

5 Ensaio sobre o Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, t. II, 1862, p. 261.

6 Apontamentos sobre o Processo Criminal Brasileiro, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1857, p. 39.

7 Relembre-se o já clássico ensaio de Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, cuja 1ª edição é de 1949.

8 "O Tribunal Superior do Trabalho compor-se-á de dezessete Ministros, togados e vitalícios, escolhidos dentre brasileiros com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos, [...] dos quais onze escolhidos dentre juízes dos Tribunais Regionais do Trabalho, integrantes da carreira da magistratura trabalhista, três dentre advogados e três dentre membros do Ministério Público do Trabalho."

9 "É vedado ao magistrado: [...] III – manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério."

10 Cícero, De re publica, I, XXV, 39.

11 "Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal".





Texto recebido e aceito para publicação em 19 de junho de 2004.





Fábio Konder Comparato é professor-titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor honoris causa da Universidade de Coimbra e doutor em Direito pela Universidade de Paris.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

PEC 33 PRETENDE ABOLIR SEPARAÇÃO DOS PODERES


Aos poucos, mas a passos seguros, o Brasil adentra na maturidade democrática. É certo que as tensões entre os Poderes existem — e sempre existirão — por ser inerente ao próprio sistema de freios e contrapesos onde repousa o Estado Democrático de Direito.
O fato de o Poder Judiciário decidir questões que, originariamente, deveriam ser votadas e decididas pelo Parlamento não significa judicializar a política, mas delinear suas balizas a partir da própria Constituição, que foi, em última análise, produzida pelos legisladores eleitos pelo povo. Portanto, as decisões do Supremo, todas tomadas a partir da provocação de legitimados para fazê-lo, inclusive pelos próprios parlamentares (ver caso dos royalties do pré-sal e tramitação de projetos que vedam a criação de novos partidos políticos), são legitimadas pela vontade do povo contida na Constituição.
Questões como cotas raciais no ensino superior, fetos anencefálicos, união homoafetiva, liberação para pesquisa com células-tronco, constitucionalidade de terras quilombolas, direitos dos indígenas (Raposa Serra do Sol), validade da Lei da Ficha Limpa, mandato do partido e não do parlamentar, alcance da Lei da Anistia, uso de algemas, dentre vários outros, foram apreciadas pela Suprema Corte à luz da Constituição dentro de sua competência jurisdicional e não podem ser objeto de validação por outro Poder.
O Legislativo tem a oportunidade e o dever de opinar sobre a constitucionalidade das leis por ocasião da apreciação de todos os projetos de lei, na Comissão de Constituição e Justiça, como requisito primário para iniciar sua tramitação.
Ocorre que o jogo político-partidário, onde se tem diversos segmentos representados com distintos interesses, nem sempre enfrenta e decide tão relevantes matérias para os cidadãos. A verdade é que o tempo da política depende de certos acontecimentos, a maioria derivada da pressão popular, o que muitas vezes impede que o Parlamento exerça, na plenitude, suas atribuições constitucionais.
Por outro lado, não se vê o Legislativo (leia-se base governista), também em razão do jogo político-partidário, lutar contra a atrofia que o Poder Executivo lhe impõe a partir das constantes Medidas Provisórias. Poucos parlamentares, por exemplo, reclamaram contra a postura do Poder Executivo de vetar vários dispositivos do Código Florestal e editar, em seguida e antes da apreciação do veto, Medida Provisória impondo a sua visão sobre como deveriam ser os dispositivos vetados.
A Proposta de Emenda Constitucional (PEC 33), de autoria do deputado Nazareno Fonteles, do PT-PI, é natimorta por pretender abolir uma cláusula pétrea da Constituição, que é a da separação dos poderes, não devendo nem ser processada no próprio Parlamento (artigo 60, parágrafo 4º, CF). A PEC 33 parte do equivocado pressuposto de que o voto popular dá poderes ao Legislativo para alterar decisões judiciais da Suprema Corte em matérias constitucionais, o que subverte a lógica do constituinte de 1988, que deu ao STF a palavra final no controle de constitucionalidade das leis.
É bem verdade que o voto popular é a essência da democracia, mas não poderá servir de salvo-conduto para acabar com a independência do Poder Judiciário, mormente quando é usado como retaliação a interesses contrariados. Veja-se a falta que um Poder Judiciário forte e independente faz à Venezuela e a outros países latino-americanos, onde a atrofia do sistema de freios e contrapesos impede a plenitude das liberdades democráticas.
Ainda há tempo para o Legislativo reavaliar essa postura, pois os interesses que representa são do povo e não dos partidos políticos e de seus integrantes.
Ophir Cavalcante Júnior é advogado e ex-presidente do Conselho Federal da OAB
Revista Consultor Jurídico, 29 de abril de 2013

sexta-feira, 26 de abril de 2013

O JUDICIÁRIO TEM O DEVER DE CORRIGIR DESVIO DO LEGISLATIVO


Existem leis em nosso ordenamento jurídico que, se aplicadas a um determinado caso concreto, irão gerar uma grande injustiça, embora em tese sejam consideradas constitucionais.
A partir deste momento, podemos separar a análise a seguir em dois critérios: (i) o motivo da criação de determinada norma e (ii) o modo como foi feito este processo.
Objeto de difícil análise e comprovação se mostra a primeira fase da análise: o motivo pelo qual levou o legislador a editar determinada norma. Caso este motivo infrinja garantia de direitos fundamentais, é pacífico que esta norma será considerada inconstitucional. Porém, se não houver ofensa a direito fundamental, mas um desvio de finalidade do seu órgão propositor? A atuação ilegítima também seria passível de controle?
O processo legislativo ocorre com a votação, onde a maioria irá decidir o destino da sociedade. Esta maioria vencedora que atuar com o desvio de finalidade poderá agir sem controle?
Estas questões entram em debate no exemplo recente da nova distribuição dos royalties. Claramente há o interesse econômico em jogo, deixando em segundo plano a própria definição do instituto. A Constituição garante aos estados produtores uma compensação financeira pela exploração do petróleo e do gás natural em seu respectivo território. Isto porque há o risco nesta atividade, então o lugar deve ter uma infraestrutura para manutenção da exploração, bem como meios de reparar eventuais danos que surgirem.
Deixando de lado a questão da efetiva implementação ou não dos recursos para sua finalidade originária, o fato é que membros do legislativo advindos dos estados não produtores atuaram como corretores de valores dos seus respectivos estados, o que foge à sua atuação, que representa um caráter nacional e não interesse meramente local de enriquecimento do ente federado.
Então temos o outro aspecto da maioria. No caso específico, a maioria é de estados não produtores, o que leva a uma vitória no momento da votação e sobrepujando a minoria. A Constituição é o instrumento de garantia na democracia de que a maioria deverá respeitar os direitos da minoria. Como fica resolvido este problema? Não se pode alegar que o direito da minoria fora observado, visto que se prevê uma redução e não seu completo esvaziamento, porque tal diminuição acarreta no prejuízo de várias atividades, causando graves consequências de ordem estrutural e contratual, por exemplo.
Se o motivo é ilegítimo, poderia o Judiciário se imiscuir neste âmbito sem ferir a separação de poderes? Ouso opinar no sentido afirmativo, pois Ferrajoli ensina que a jurisdição é a garantia de um direito, que se ele não puder ser exigido, ele não existe efetivamente. No caso, embora a Administração Pública tenha auto-executoriedade, somente poderá exerçê-la nos limites legais estabelecidos e, para a definição do alcance e do sentido encontramos o Judiciário. Além do mais, cabe ao Poder Judiciário a salvaguarda de um ordenamento jurídico harmônico, com seus princípios e regras respeitando a Constituição.
Portanto, os casos análogos a este que, em uma primeira análise, não contêm vício algum, há, em verdade, após um estudo mais minucioso, a inconstitucionalidade pelo desvio de função do órgão legiferante.
A forma com a qual o Judiciário irá tutelar será vista mais adiante. Porém, há outro caso para se observar antes de chegar a este ponto: lei constitucional aplicada ao caso concreto gerando injustiça a determinado indivíduo, tendo em mente que o caráter genérico da lei irá comportar certos problemas a determinadas pessoas e que o Judiciário deve ficar atento a estas hipóteses.
Passada a fase do controle abstrato e chegando à sua aplicabilidade, é preciso observar alguns aspectos. O primeiro deles é quanto à legitimidade do julgador para definir justiça ou injustiça de determinado mandamento legal ao caso concreto: há certa esquizofrenia quando o Estado determina que uma lei deva ser respeitada e aplicada por todos e, num segundo momento, o próprio Estado se pronuncia no sentido que determinado caso não está coberto pelo mandamento que continua válido e vigente.
Entretanto, um aspecto relevante deste pensamento é que, mesmo sendo um órgão estatal, presentando o Estado (não é representando, mas sim personificando o Estado), o juiz é um ser humano e, como tal, detém suas próprias ideologias e opiniões pessoais, que necessariamente irão influenciar no momento de julgar.
A dicotomia entre juiz-Estado e juiz-ser humano ganha interessante viés com o passar dos anos e a crescente comunicação dos sistemas da civil law e common law, surgindo o tensionamento constante entre legalidade estrita e fundamentos principiológicos para a resolução do caso. Embora sempre regido pela lei, a justiça do caso concreto ganha força, mas sempre devendo equilibrar com a estabilidade de um ordenamento no qual as partes não se surpreendam com alguma decisão “tirada da cartola”. Por conseguinte, qual o limite estabelecido para o julgador atuar no controle de uma lei injusta?
Para tentar traçar linhas gerais de como seria feita esta limitação, é preciso entender que o magistrado deve ser imparcial, portanto, o resultado de seu livre convencimento não lhe trará vantagem alguma. Outra questão importante é a imprescindibilidade de motivação de sua decisão e sua consequente publicidade.
Embora a regra geral seja da vinculação dos efeitos do caso concreto ao dispositivo da sentença, a fundamentação serve para controle externo da atuação jurisdicional. Observando esta grande importância, o projeto do novo Código de Processo Civil determina a exposição com especificação analítica dos motivos que levaram o julgador a tomar determinada decisão. Mesmo sendo taxado por alguns doutrinadores mais clássicos de mero poder-saber, são inegáveis os efeitos políticos, econômicos e sociais das decisões judiciais; e o fato de não haver eleição para ocupação do cargo deve ser equilibrado com a ampla ciência dos seus atos, concretizando sua legitimação.
Outra observação de limitação e controle dos atos do Judiciário, na concepção de Picardi, reside na ideia que o juiz está submetido a uma série de etapas vinculadas de análise de valores hermenêuticos até chegar ao momento em que deverá escolher uma entre duas ou mais situações possíveis de solução da lide. Ou seja, conclui-se que a escolha entre aplicação de uma lei injusta para o caso concreto e um princípio é a etapa final a que o magistrado atinge, tendo que sopesar entre a estrita aplicação da lei ou a inserção de um princípio para retirar a subsunção do caso.
O juiz, neste sentido, deixa de ser a “boca da lei”, sabendo de seu compromisso com a justa composição da lide e da efetividade dos princípios constitucionais. Ele deve velar pela harmonia de todo o ordenamento, levando em consideração que sua atuação deve ser imparcial e que sua decisão deve ser analiticamente motivada, nunca esquecendo a razoabilidade e proporcionalidade como parâmetros.
Irapuã Santana do Nascimento da Silva é mestrando em Direito Processual na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Revista Consultor Jurídico, 25 de abril de 2013

terça-feira, 9 de abril de 2013

DEMOCRACIA EXIGE SEPARAÇÃO ENTRE POVO E REPRESENTAÇÃO


É comum entre nós a ideia de que a democracia exige uma espécie de identidade essencial entre o que deseja o povo e a ação de seus representantes políticos. Em termos mais ingênuos, não são poucos os que acreditam que a democracia se revela tanto mais perfeita quanto mais identidade existir entre a vontade do povo e os atos dos governantes. Como pretendo demonstrar, a democracia não só prescinde de uma tal identidade, como de fato recusa a sua existência. Segundo Konrad Hesse, nem mesmo as democracias diretas podem pretender uma exata correspondência entre povo e detentores do poder. Portanto, se isso fosse verdadeiro, todos os regimes democráticos teriam falhado no essencial.

Contudo, bem observados os fatos, precisamente pela ausência de identidade fundamental entre o povo e os seus representantes, é que a virtude da democracia não está na transmissão sem contraste entre a vontade popular e as decisões e os atos de governo. Pelo contrário, a virtude da democracia consiste, precisamente, no fato de que, na sua conformação e existência, não havendo identidade entre o povo e os seus representantes no poder, mesmo a vontade do titular soberano do poder (o povo) pode sofrer — e de fato sofre — limitações, sobretudo, quando queira manifestar-se legitimamente. Por sua vez, essa distinção implica também, nos regimes democráticos, a existência de outros elementos essenciais à sua configuração: limites constitucionais e legais à vontade da maioria, controle e responsabilidade dos agentes de poder, além de respeito aos direitos das minorias.
Diversamente, nos regimes em que se possa afirmar a identidade entre a vontade do povo — como totalidade — e de seus governantes, suportados nessa identidade, obviamente, será mais fácil recusar tanto os direitos das minorias como também recusar a necessidade de controle e de responsabilidade dos governantes. De fato, dir-se-ia: para que se controlar governantes, ou respeitar direitos de minorias, num regime em que as decisões dos governantes apenas representam — em identidade essencial — a vontade de toda gente?
Mas enfrentemos melhor essas ideias.
Como todos sabem, o artigo 14 da Constituição da República, com seus incisos, alíneas e parágrafos, representa a concretização do princípio da soberania popular, por sua vez, já preconizado no artigo 1º, parágrafo único, do mesmo texto constitucional. Sendo um dos dispositivos mais conhecidos de nossa Lei Fundamental, o parágrafo único do seu artigo 1º prescreve que o poder soberano do Estado pertence em última instância ao povo, que o pode exercer tanto diretamente (através de plebiscito, referendo ou iniciativa popular), como por intermédio dos seus representantes, cuja escolha se desenvolve pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, conforme disciplina legal.
É, pois, esse princípio democrático que governa, tanto formal como materialmente, o processo político, no qual se expressa o poder do Estado, e sob cujo influxo, direta ou indiretamente, ganha esse poder legitimidade para desenvolver-se. Contudo, e isso nem sempre se consegue notar, ao afirmar o princípio da democracia representativa, nega-se aqui também uma identidade essencialentre os eleitores (o povo) e os que, em seu nome, exercem o poder.
Essa separação entre povo e os seus representantes (o governo), contudo, ao invés de implicar uma fraqueza dos regimes democráticos, como passo a demonstrar, significa uma de suas maiores virtudes.
Diversa, por exemplo, era a situação dos antigos Estados absolutistas, em que expressamente se pregava uma unidade essencial entre o povo, o Estado e o governante (l’Etat c’est moi). Nos regimes totalitários, a identidade é ainda mais profunda, pretendendo-se confundir, de um lado, a vida privada do cidadão com a esfera pública; de outro, restringir a sociedade civil aos contornos do próprio Estado. Assim, fora do Estado não existe vida nem sociedade civil.
Por tudo isso, no dizer de Martin Kriele, a ideia de democracia, como concebida contemporaneamente, não se compadece com o princípio da identidade, mas apenas como o de representaçãoOs órgãos do Estado não pretendem ser o povo, mas (apenas) representá-lo[1]. Somente governos totalitários (muito mais que os autocráticos) podem pretender, mais do que representar a vontade popular, ser a sua própria encarnação.
A compreensão de democracia nos Estados atuais leva-nos, pois, a negar uma identidade absoluta ou essencial entre governantes e governados, o que só se poderia alcançar, de qualquer forma, mediante uma conversão totalizante e absolutamente indevida da vontade do verdadeiro titular do poder soberano, o povo, em simples vontade de quem governa. Além disso, nas modernas democracias constitucionais, há sempre a possibilidade de normas constitucionais e legais bloquearem a própria vontade popular. O povo, se quiser contrariar as opções legislativas e constitucionais tomadas deverá, previamente, segundo o devido processo legislativo, modificar as normas institucionalmente já existentes. Aliás, no caso das chamadas Cláusulas Pétreas, algumas opções são até mesmo subtraídas da possibilidade de alteração.
Rejeita-se, portanto, qualquer espécie de identidade total entre governantes e governados, mesmo que se cuide de uma implausível democracia direta que, de toda sorte, apenas se faria possível mediante a identificação forçada da vontade da maioria dos que participam das eleições e das decisões estatais com a vontade de toda a comunidade nacional. De fato, uma tal identificação (Sinne identitärer Demokratie), adverte Konrad Hesse, além do mais, resultaria numa espécie de inadmissível domínio total (totale Herrschaft), por exigir a desconsideração tanto da vontade dos não votantes como da vontade daqueles que perderam a votação (minoria), ou mesmo daqueles que não estavam legitimados ao voto (Nicht-Stimmberechtigten)[2].
Outro grave problema que se coloca na base de uma total identidade entre governantes e governados é que essa ordem de ideias implicaria negar a possibilidade e mesmo a existência de conflitos no seio da comunidade nacional. Assim, por mais que os governantes se legitimem e se esforcem por representar a vontade da — mais ampla — maioria, e mesmo que alcançassem em determinado momento a totalidade dos votos dos cidadãos do Estado legitimados a votar, a imposição constitucional de voto periódico, universal, livre e com valor igual para todos, ao trazer sempre à memória da sociedade e dos governantes a necessidade de alternância no poder, impõe a certeza de que, na democracia, os representantes do povo são e serão sempre algo diverso daquele que é o verdadeiro titular do poder soberano: o povo.
Por isso, todo poder há de ser, em nossa realidade constitucional, periódico, circunstancial, passível de mudança. Aliás, essa ideia é tão cara à nossa Constituição, que o Poder Constituinte a elevou à condição de cláusula irreversível, ao estabelecer no artigo 60, parágrafo 4º, II, da Constituição da República, que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir o voto direto, secreto, universal e periódico. Ao fixar o sufrágio periódico como regra imutável, a Constituição, além de estabelecer a necessidade de eleições como processo regular para a escolha dos governantes, cumpre institucionalmente a função de (a) garantir o direito subjetivo de cada cidadão de ver considerada a sua opinião política manifestada através do voto, bem como (b) assegurar aos cidadãos o direito subjetivo de participar como candidatos de eleições[3].
Dada a importância, pois, da manifestação do voto, por meio do direito político ativo, assim como do direito fundamental de pleitear uma candidatura, ou de tomar parte de sua indicação por meio dodireito político passivo, é que a doutrina e a jurisprudência reconhecem nos direitos políticos as qualidades de um direito irrenunciável, intransmissível e inalienável, não admitindo, pois, seu exercício por representação (procuração) de terceiro, porquanto, em resumo, um direito personalíssimo[4].
Nem a chamada democracia direta suprime, entre nós, a separação entre a vontade do povo e decisão de governo ao final tomada. Não por outra ração, todas as formas de democracia direta previstas na Constituição (plebiscito, referendo e iniciativa popular), se pretendem manifestar-se legitimamente, submetem-se a limitações tanto formais quanto materiais.
Além disso, os pressupostos e a estrutura para o exercício pelo povo de uma democracia exclusivamente direta, na sábia advertência do professor Gomes Canotilho, desapareceram quase que completamente no quadro histórico da sociedade e dos Estados contemporâneos[5]. Com efeito, a estrutura territorial e social, a acentuada complexidade nas expectativas e valores sociais, a multiplicidade e especificidades dos problemas a resolver, os riscos aí envolvidos, assim como a exigência de crescentes e específicos conhecimentos técnicos para a sua solução, tudo isso acabou conformando a base das atuais sociedades (complexas, de risco e de massa), inviabilizando por completo a possibilidade de que os negócios do Estado fossem geridos permanentemente por deliberações de todo o povo reunido em assembleia.
Lembra ainda o professor Canotilho, o medo de que a vontade popular pudesse ser manipulada, seja por líderes carismáticos, na forma de alguma espécie de Cesarismo ou Bonapartismo (veja-se o exemplo de Hitler e do Partido Nacional-Socialista — NSDAP[6]), seja pela possibilidade de os meios de comunicação atuarem, nas sociedades de massa, como agenda-setter, isto é, agendarem os temas que acabam ganhando a atenção e a preferência popular (agenda-setting theory), tudo isso acabou por justificar, lembra o mestre de Coimbra, uma recorrente hostilidade contra os procedimentos de democracia semidireta[7].
Não obstante isso, em nosso país, o poder constituinte acabou consagrando instrumentos de democracia direta (o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular), que, inseridos no texto constitucional, ao mesclarem-se com a democracia representativa, explicitamente privilegiada pela Constituição, irão conformar em nosso País uma forma de democracia semidireta. A doutrina distingue os institutos do plebiscito e do referendo, basicamente, tendo em consideração o momento em que o povo é chamado a manifestar diretamente a sua vontade política.
Se o povo é chamado a manifestar a sua vontade, aprovando ou rejeitando o ato normativo,antes de sua deliberação pelo legislador, de tal ordem que a sua vontade componha o próprio processo de decisão, é caso de plebiscito[8]; se, diversamente, o povo é convocado quando o ato normativo já foi editado, na forma de ratificação ou rejeição, o caso é de referendo. Observe-se que, numa como noutra manifestação de democracia direta, conquanto preponderante, a vontade popular não é exclusiva e depende sempre, antes ou depois, da manifestação de outros órgãos de poder. Além disso, não obstante veículos de exercício de democracia direta, tanto no plebiscito como no referendo, o resultado da manifestação da vontade popular submeter-se-á sempre ao controle de constitucionalidade, tanto na forma abstrata como no caso concreto.
No Brasil, desde a edição da Lei 9.709/98, os institutos do plebiscito e do referendo ganharam precisa conformação legal, respectivamente, em seu artigo 2º, parágrafo 1º e 2º. No que respeita à forma de sua convocação, ainda segundo a Lei 9.709/98, no seu artigo 3º, nas questões de relevância nacional, de competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo, bem como no caso do parágrafo 3º do artigo 18 da Constituição Federal, o plebiscito e o referendo são convocados mediante decreto legislativo, por proposta de um terço, no mínimo, dos membros que compõem qualquer das Casas do Congresso Nacional, de conformidade com esta Lei.
A Constituição Federal, especificamente, impõe a consulta popular como pressuposto formal para a deliberação sobre alguns fatos jurídico-políticos. Assim, nos casos de incorporação, subdivisão e desmembramento de Estados-membros ou Municípios, em que, expressamente, a Constituição exige a consulta prévia, mediante plebiscito, da população ou das populações diretamente interessadas (artigo 18, parágrafos 3º e 4º, da Constituição da República).
Por fim, por intermédio da chamada iniciativa popular (artigo 14, III, da CF), a Constituição estimulou a participação direta do povo na formação da vontade política do Estado, conferindo-lhe a titularidade de iniciativa de lei, autorizando-lhe, sem a necessidade de intermediação de um representante político, diretamente, propor projetos de lei. Contudo, também aqui não há uma exata e incontrastável conformação da vontade do povo em ato de poder e de governo. Em outras palavras, também aqui a Constituição separa povo e governantes.
De fato, segundo o artigo 61, parágrafo 2º, da Constituição, a iniciativa popular será exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles. Como se vê, a vontade popular aqui se limita à iniciativa de projeto de lei, ato que apenas faz instaurar o processo legislativo. A partir de então, o projeto de iniciativa popular, não obstante a considerável força política de sua origem, estará sujeito à mesma sorte (ou azar) de qualquer outro projeto de lei. Além disso, também aqui, ainda que convertendo-se em lei o projeto de iniciativa popular, o ato normativo daí resultante submete-se ao controle de constitucionalidade.
Como se dizia, todas essas formas de manifestação direta de poder popular sofrem restrições quanto à sua possibilidade de manifestação. Tudo isso é bom para a democracia, pois, se, de um lado, não é recomendável que algum poder, grupo ou organização de pessoas, possa postular a condição de representante essencial do povo, de outro, as minorias se veriam extremamente prejudicadas na defesa de seus interesses se a maioria e seus representantes, pretendendo representar todo o povo, pudesse — antes ou depois — exercer sua vontade sem qualquer limitação ou contraste.
Em conclusão, numa verdadeira democracia — quem o diria? — também o povo deve impor-se limitações.

[1] Kriele, Martin. Einführung in die Staatslehre. 5 ed., Opladen: Westdeutscher Verlag, 1994, p. 294.
[2] Hesse, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Heidelberg: Muller, 20 ed., 1995, p. 60.
[3] Maunz in Maunz-Dürig. Grundgesetz-Kommentar. München, Verlag C.H.Beck, 1996, Art. 38, vol. III, par. 31).
[4] Maunz in Maunz-Dürig. Grundgesetz-Kommentar. München, Verlag C.H.Beck, 1996, Art. 38, vol. III, par. 32).
[5] Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., 2003, p. 294.
[6] É também do prof. Canotilho a lembrança da trágica herança plebiscitária da República de Weimar assim como as consultas plebiscitárias gaullistas.
[7] Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., 2003, p. 297. Ver também McCombs, Maxwell. Setting the Agenda: The Mass Media and Public Opinion, 2004, p. 2
[8] Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., 2003, p. 296.
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico, 8 de abril de 2013

quinta-feira, 14 de março de 2013

É PRECISO IDENTIFICAR O CONCEITO DE POVO NA DEMOCRACIA BRASILEIRA

Por Luiz Cláudio Borges
Revista Consultor Jurídico, 18 de abril de 2012
O presente estudo tem por escopo apontar a ideia de povo no regime constitucional democrático, sobretudo no sistema brasileiro. Como marco teórico será utilizado o jurista e filósofo Friedrich Müller, que publicou no Brasil a obra Quem é o Povo?
Considerando que a expressão "povo", assim como o termo "democracia", recebe diversas interpretações, algumas delas equivocadas, se fará necessário a reconstrução da ideia de povo e sua aplicabilidade no regime democrático brasileiro. Não obstante o desafio quase que inatingível proposto por Müller em sua obra Quem é o povo?.
É evidente que o presente trabalho não tem a pretensão de esgotar o assunto, até porque a matéria é extensa. Também, nada de inédito será apresentado, pelo contrário, objetiva-se analisar as ideias insertas na obra do jurista alemão e aplicá-las no conceito que entendemos de "povo"; igualmente, não se trata de uma resenha da referida obra, mesmo porque o estudo não se limita aos conceitos trazidos pelo autor, mas expõe, ainda que timidamente, uma visão deste pesquisador sobre o tema aplicado ao nosso sistema constitucional democrático.
Povo: conceito e aplicação no sistema democrático
No discurso de lançamento da obra Quem é o Povo,[i] do jurista e filósofo alemão Friedrich Müller, ficou claro que a questão fundamental da democracia é o povo, mas que povo é esse? As pessoas que vivem legalmente no país? Os titulares dos direitos de nacionalidade? Os titulares dos direito civis? Os titulares dos direitos eleitorais ativos e passivos? Apenas os adultos? Apenas os membros de determinados grupos étnicos, religiosos ou sociais?
O ensaio de Müller publicado no Brasil faz pontuais observações sobre o direito constitucional brasileiro e nos leva a viajar no tempo a desvendar o conceito de povo.
Há muito a noção de povo é conhecida e utilizada na antiguidade clássica, sobretudo em matéria de teoria política e de direito público. Os gregos foram os grandes responsáveis pela construção do que entendemos hoje como democracia. Inspirados nos ideais de que tudo deveria ser debatido e decidido de forma consensual, os iluministas pensaram a substituição das relações feudais de poder pelo "demo" (povo) + "cratos" (regime), formando a expressão democracia, que significa o governo do povo para o povo.[ii]
Fábio Konder Comparato discorre que "a partir do século XVIII, já não se pode eludir a questão fundamental, ligada à própria essência desse regime político: se o poder supremo em uma democracia, como a própria etimologia nos indica, pertence ao povo, como definir este conceito de modo a torná-lo o mais operacional possível e evitar as usurpações de soberania?"[iii]
Povo não é um conceito descritivo, mas claramente constitucional.[iv] Müller sustenta que "povo não é um conceito simples nem um conceito empírico; povo é um conceito artificial, composto, valorativo; mais ainda, é e sempre foi um conceito de combate".[v]
O povo aparece na teoria jurídica da democracia enquanto bloco. Ele é a pedra fundamental imóvel da teoria da soberania popular e fornece como lugar-comum de retórica a justificativa para qualquer ação do Estado.[vi]
Comparato revela que a primeira utilização consequente do conceito de povo como titular da soberania democrática, nos tempos modernos, aparece com os norte-americanos. Thomas Jefferson atribuía ao povo um papel preeminente na constitucionalização do país, pois ao redigir o projeto de Constituição para a Virgínia (1776), propôs que essa lei suprema, após declarar caduca a realeza britânica, fosse promulgada "pela autoridade do povo".[vii]
Mas que povo é esse? Müller busca analisar o conceito de "povo" partindo da seguinte divisão: "povo" como povo ativo; "povo" como instância global de atribuição de legitimidade; "povo" como ícone; "povo" como destinatário das prestações civilizatórias do Estado.
Entendem-se como povo ativo os titulares de nacionalidade de acordo com as prescrições normativas do texto constitucional. "Por força da prescrição expressa as constituições somente contabilizam como povo ativo os titulares de nacionalidade".[viii] Essa nacionalidade consubstancia-se na totalidade dos eleitores de um Estado.
Müller, no intuito de fortalecer o conceito de povo ativo, faz alusão à situação dos estrangeiros na União Européia: "Tradicionalmente esse dimensionamento para os titulares da nacionalidade é matéria de direito positivo, mas não se compreende por evidência. Estrangeiros, que vivem permanentemente aqui trabalham e pagam seus impostos e contribuições pertencem à população. Eles são efetivamente cidadãos. (faktisch Inlander), são atingidos como cidadãos de direito (rechtliche Inlander) pelas mesmas prescrições ‘democraticamente' legitimadas. A sua exclusão do povo ativo restringe a amplitude e a coerência da justificação democrática. Especialmente deficitário em termos de fundamentação é o princípio da ascendência (ius sanguinis), que representa uma construção de fantasia, não uma conclusão fundamentável pela empiria (sangue). Já que não se pode ter o autogoverno, na prática quase inexeqüível, pretende-se ter ao menos a autocodificação das prescrições vigentes com base na livre competição entre opiniões e interesses, com alternativas manuseáveis e possibilidades eficazes de sancionamento político.[ix]".
O autor é enfático ao afirmar que o conceito de "povo das constituições atuais" não deveria ser qualificado por meio das regulamentações do direito eleitoral e conclui: "O povo ativo não pode sustentar sozinho um sistema tão repleto de pressupostos".[x]
O conceito de "povo" como instância global de atribuição de legitimidade, sustenta Müller, torna-se mais acessível a partir da compreensão da ideia de estrutura de legitimação. O autor frisa que o Executivo e o Judiciário estão fundamentalmente interligados com a noção de Estado de Direito e Democracia.
Neste contexto, o povo elege seus representantes, os quais, por sua vez, são responsáveis pela elaboração de textos de normas, que, em regra, vinculam as ações e interesses do próprio povo, enquanto população.[xi]
O povo é visto de outra maneira, agora como instancia global de atribuição de legitimidade democrática, pois ele justifica o ordenamento jurídico num sentido mais amplo como ordenamento democrático, "à medida que o aceita globalmente, não se revoltando contra o mesmo."[xii] Salienta o autor que o povo como instância global de atribuição de legitimidade só se justifica quando presente ao mesmo tempo a figura do povo ativo, pois, num sistema autoritário, não obstante o povo seja fartamente invocado como instância de atribuição, "depois só tem (des)valor ideológico, não mais função jurídica."[xiii]
Müller conceitua o povo "como ícone" partindo da ideia de um povo intocável, uma imagem abstrata e discursivamente construída como una e indivisível. Não diz respeito a nenhum cidadão ou grupo de pessoas. Pelo contrário, é um povo que "não existe" na vida real. E é exatamente este povo - o povo ícone - a figura invocada pela minoria detentora do poder; historicamente as políticas xenófobas, discriminatórias e violentas são respaldadas por discursos como "em nome do povo".[xiv]
"Em termos bem genéricos, a iconização reside por igual também nicht zuletzt no empenho de unificar em ‘povo' a população diferenciada, quando não cindida pela diferença segundo o gênero, as classes ou camadas sociais, frequentemente também segundo a etnia e a língua, a cultura e a religião. A simples fórmula do ‘poder constituinte do povo' já espelha ilusoriamente o uno"[xv].
Na elaboração do conceito de "povo como destinatário de prestações civilizatórias do Estado", Müller discorre que: "A função do ‘povo' que um Estado invoca, consiste sempre em legitimá-lo. A democracia é dispositivo de normas especialmente exigentes, que diz respeito a todas as pessoas no seu âmbito de ‘demos', de categorias distintas (enquanto povo ativo, povo como instância de atribuição ou ainda povo-destinatário) e graus distintos. A distinção entre direitos de cidadania e direitos humanos não é apenas diferencial; ela é relevante com vistas ao sistema. Não somente as liberdades civis, mas também os direitos humanos enquanto realizados são imprescindíveis para uma democracia legítima. O respeito dessas posições, que não são próprias da cidadania no sentido mais estrito, também apóia o sistema político, e isso, não apenas na sua qualidade de Estado de Direito. Isso se acerca novamente, dessa vez a partir de um outro ângulo, da ideia fundamental não-realizada no sistema de dominação: ‘on man on vote': do ângulo da ideia do ‘povo' como totalidade dos efetivamente atingidos pelo direito vigente e pelos atos decisórios do poder estatal - totalidade entendida aqui como a das pessoas que se encontram no território do respectivo Estado. Segundo essa proposta (ao lado da figura do povo enquanto instância de atribuição), o corpo de textos de uma democracia de conformidade com o Estado de Direito se legitima por duas coisas: em primeiro lugar procurando dotar a possível minoria dos cidadãos ativos, não importa quão mediata ou imediatamente, de competências de decisão e de sancionamento claramente definidas; em segundo lugar e ao lado desse fator de ordem procedimental, a legitimidade ocorre pelo modo mediante o qual todos, o ‘povo inteiro', a população, a totalidade dos atingidos são tratados por tais decisões e seu modo de implementação. Ambas, a decisão (enquanto co-participação do "povo") e a implementação (enquanto efeitos produzidos "sobre o povo") , devem ser questionadas democraticamente. Os dois aspectos são resultados de uma cultura jurídica desenvolvida, assim como o é a correção, nos termos do Estado de Direito, da observância, por parte do Estado, das circunstâncias de fato de inibição da ação estatal bem como de prestações estatais diante das pessoas atingidas. Podemos denominar essa camada funcional do problema "o povo como destinatário de prestações civilizatórias do Estado [zivilisatorisch Staatsleistungen]", como ‘povo-destinatário'"[xvi].
O fato de as pessoas se encontrarem no território de um Estado e ali fixar residência, trabalhar, estabelecer laços pessoais e materiais é suficiente para adquirir, juridicamente, qualidade de ser humano, a dignidade da pessoa humana, a personalidade jurídica. "Estão protegidas pelo direito constitucional e pelo direito infraconstitucional vigente, i.e., gozam da proteção jurídica".[xvii] Portanto, destinatários de prestações civilizatórias do Estado.
Observa-se na obra "Quem é o Povo?" que a legitimidade do sistema democrático não está somente na busca de uma conceituação jurídico-política de povo, mas principalmente em levar o povo a sério; povo este considerado como uma realidade viva em um mundo concreto. O autor não se preocupou em dar o significado da palavra povo, mas como ela é utilizada. Portanto, o resultado "não são quatro povos nem quatro conceitos de povo." São apenas gesticulações.[xviii]
"Quem é o povo" no regime constitucional democrático brasileiro
Friedrich Müller defende que a referência ao povo é necessária, isto porque o sistema deve poder representar-se como se funcionasse com base na soberania popular, na autodeterminação do povo, na igualdade de todos e no direito de decidir de acordo com a vontade da maioria.[xix]
Neste contexto, podemos concluir que o conceito de povo é inafastável do conceito de democracia, sobretudo porque é o povo quem legitima o poder.
Bonavides conceitua democracia como "aquela forma de exercício da função governativa em que a vontade soberana do povo decide, direta ou indiretamente, todas as questões de governo, de tal sorte que o povo seja sempre o titular e o objeto, a saber, o sujeito ativo e o sujeito passivo do poder legítimo".[xx]
Na Constituição de 1988, mais especificamente no parágrafo único do artigo 1º, o constituinte fez constar que "todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente [...]".[xxi]
Partindo dos ensinamentos de Müller, podemos dizer que no sistema democrático brasileiro, assim como em qualquer sistema democrático, podemos utilizar os quatro conceitos de povo. [xxii] Não obstante a simplicidade de sua aplicação, as peculiaridades do sistema democrático brasileiro a torna complexa.
Hoje, se limitássemos à classificação de povo como "povo ativo", estaríamos excluindo milhões de brasileiros, pois o voto só é obrigatório para os maiores de 18 e menores de 65 anos; para os maiores de 16 e menores de 18, assim como para os maiores de 65 anos, o voto é facultativo. E mais, os estrangeiros, os condenados e os militares constritos são proibidos de votar. Com isso, o "povo ativo" se limitaria a 2/3 da população brasileira.
Se para existir um "povo como instância global de atribuição de legitimidade", que é aquele que se sujeita ao ordenamento jurídico, parte-se do pressuposto de que deva existir um "povo ativo", que elege seus representantes, os quais são responsáveis pela formação do ordenamento jurídico, como se enquadrariam aqueles que residem no Brasil, se sujeitam às nossas normas, mas são estrangeiros?
Para pensar. E o conceito de povo como "povo-destinatário"? No conjunto da obra é fácil perceber que o povo como destinatário das prestações civilizatórias do Estado deveriam ser todos aqueles, ativos ou não, legitimados ou não, mas, que se encontram no nosso território. Entretanto, nesse conceito não se inclui os excluídos e as minorias.
Na visão de Müller, numa sociedade avançada existe uma "disfuncionalidade setorial" provocada por uma cisão segmentária da ordem social e jurídica. Segundo o autor: "Trata-se aqui da discriminação parcial de parcelas consideráveis da população, vinculada preponderantemente a determinadas áreas; permite-se a essas parcelas da população a presença física no território nacional, embora elas sejam excluídas tendencialmente e difusamente dos sistemas prestacionais [...] econômicos, jurídicos, políticos, médicos e dos sistemas de treinamento e educação, o que significa ‘marginalização' como subintegração".[xxiii]
Se admitirmos que o povo como ícone não participa do processo democrático ou, se participa, acaba sendo subjugado pela maioria, ficando expostos às suas vontades e sem representatividade no Parlamento, estamos afirmando que essa parcela da população estaria fada a sucumbir-se diante da maioria.
Em 1987, Geraldo Ataliba escreveu um pequeno texto - O Judiciário e as minorias - onde demonstra toda sua preocupação com esta parcela do povo (se é que o conceito de povo admite divisão), onde expõem suas ideias e prevê uma atuação mais efetiva do Judiciário, o que denominamos hoje de o papel contramajoritário da jurisdição: "De nada adianta fazer uma constituição, se ela não for obedecida. Não adiante haver lei [1]para tudo, se não for respeitada. Daí a importância do Poder Judiciário. Este merece especial cuidado dos constituintes, pois é a chave de todas as instituições. Elas só funcionam com o virtual ou atual controle do Judiciário, como demonstra o sábio Seabra Fagundes.
Na nossa sociedade tão deformada, involuída e subdesenvolvida, o Judiciário é mais importante do que nos países adiantados (que, aliás, o são porque têm boas instituições judiciais). É que os fracos, os pobres, os destituídos, os desamparados, bem como as minorias (raciais, religiosas, econômicas, políticas e étnicas etc), só têm por arma a defesa do direito. E direito só existe onde haja juízes que obriguem seu cumprimento.
Na democracia, governam as maiorias. Elas fazem as leis, elas escolhem os governantes. Estes são comprometidos com as maiorias que o elegeram e a elas devem agradar. As minorias não têm força. Não fazem leis, nem designam agentes políticos ou administrativos.
Sua única proteção está no judiciário. Este não tem compromisso com a maioria. Não precisa agradá-la, nem cortejá-la. Os membros do judiciário não são eleitos pelo povo. Não são transitórios, não são periódicos. Sua investidura é vitalícia. Os magistrados não representam a maioria, são a expressão da consciência jurídica nacional.
Seu único compromisso é com o direito, com a Constituição e as leis; com os princípios jurídicos encampados pela Constituição e por ela não repelidos (...)".[xxiv]
O povo, na verdade ainda está por ser criado.[xxv] Podemos tomar esta afirmativa como verdade, partindo do pressuposto que não existe um conceito universal aplicável a toda forma de democracia. Hoje assistimos a um total desinteresse de uma boa parcela do povo brasileiro, que não acredita mais nos representantes que eles escolhem e nas instituições, como o Judiciário, o que, de certa afasta, ainda que discretamente, a essência da democracia, que é o governo do povo para o povo.
Considerações finais
Procuramos apontar neste estudo as ideias do jurista e filósofo Friedrich Müller acerca dos conceitos de "povo" elencados na obra Quem é o povo?, publicada no Brasil, pela Editora Revista dos Tribunais.
Não se discutiu neste trabalho o significado da palavra "povo", mas como ela vem sendo utilizada. O autor alemão aponta que povo pode ser visto como: "povo" ativo (somente aqueles que participam efetivamente do processo eleitoral); "povo" como instância global de atribuição de legitimidade (aqueles que se submetem ao ordenamento jurídico sem questioná-lo, dando legitimidade aos representantes e legisladores); "povo" como ícone (aqueles excluídos, que não participam do processo democrático, mas que são tidos como unificados ao conceito de povo); "povo" como destinatário das prestações civilizatórias do Estado (aqueles que recebem do Estado toda assistência).
No Brasil, vimos que o "povo" inserto no parágrafo único do artigo 1º, da Constituição Federal de 1988, ainda que pudéssemos classificá-lo como ativo, instância global, como ícone ou como destinatário das prestações civilizatória, estaríamos sujeitos a inúmeras críticas, haja vista a falibilidade de nosso sistema democrático e das peculiaridades apontadas, sobretudo quando tratamos do "povo ativo".
Neste sentido, concluímos que no regime democrático brasileiro o conceito de "povo" é abrangente, pois engloba todos aqueles que se encontram no território brasileiro; povo esse, ainda que não detentor de direitos eleitorais, seja porque menor de 16 anos, condenado criminalmente (em cumprimento de pena), militar constrito ou estrangeiro, tem direito de participar do processo democrático e lutar pelos seus interesses; povo esse, ainda que excluído e marginalizado (e ou minorias) encontra no Judiciário uma forma de alcançar o equilíbrio provocado pela ausência de representatividade no parlamento; povo esse que, independente da cor, raça, sexo, idade ou crença merece respeito e deve ser ouvido.
Referências
1. ATALIBA, Geraldo. O Judiciário e minorias. Revista de informação legislativa, v.24, nº 96, p. 189-194, out./dez. de 1987. Disponível em: < http://www2.senado.gov.br/bdsf/bitstream/id/181799/1/000433557.pdf
3. COMPARATO, Fábio Konder. Variações sobre o conceito de povo no regime democrático. Estud. av. [online]. 1997, vol.11, n.31, pp. 211-222. ISSN 0103-4014
4. CHRISTENSE. Ralph/Müller, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia - tradução Peter Naumann; revisão da tradução Paulo Bonavides. 4ª ed. ver. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009
Müller, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia - introdução de Ralph Christensen; tradução Peter Naumann; revisão da tradução Paulo Bonavide
[i] Müller, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia - introdução de Ralph Christensen; tradução Peter Naumann; revisão da tradução Paulo Bonavides. 4ª ed. ver. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
[ii] BAHIA, Alexandre de Melo Franco. A democracia grega? Disponível em: http://joseluizquadrosdemagalhaes.blogspot.com/search/label/Coluna%20do%20professor%20Alexandre%20Bahia. Publicado em 10/11/2011. Acesso em 03/1/2012.
[iii] COMPARATO, Fábio Konder. Variações sobre o conceito de povo no regime democrático. Estud. av. [online]. 1997, vol.11, n.31, pp. 211-222. ISSN 0103-4014
[iv] Ibid. p. 213.
[v] Müller, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia. p. 94.
[vi] CHRISTENSE. Ralph/Müller, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia - tradução Peter Naumann; revisão da tradução Paulo Bonavides. 4ª ed. ver. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 93-95.
[vii] COMPARATO. Op. Cit. p. 214.
[viii] Müller. Op. Cit. p. 46.
[ix] Ibid. p. 46-47.
[x] Ibid. p. 47.
[xi] Ibid. p. 49.
[xii] Idem.
[xiii] Ibid. p. 51.
[xiv] Ibid. p. 55-56.
[xv] Ibid. p. 59.
[xvi] Ibid. p. 61.
[xvii] Ibid. p. 60.
[xviii] Ibid. p. 37.

[xix] MÜLLER, Friedrich. Democracia e exclusão social em face da globalização. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_72/artigos/Friedrich_rev72.htm. acesso em: 21/2/2012.
[xx] BONAVIDES, Paulo. A Constituição aberta. Belo Horizonte: Del Rey, 1993. p. 13
[xxi] Constituição Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em 21/12/2012.
[xxii] Para definir um sistema democrático, pode-se começar verificando empiricamente os modos lingüísticos de utilização da palavra "povo" nos textos das normas do direito vigente, sobretudo nas constituições. Dessa análise, resultam vários modos de utilização. O primeiro deles é, também, o único que, até agora, foi usado na bibliografia da Ciência do Direito como conceito jurídico de "povo": os titulares dos direitos eleitorais. Denomino esse modo de utilização "povo ativo". Isso basta para o Poder Legislativo, na medida em que se compreende, graças à idéia de representação, que "o povo" é, indiretamente, a fonte da legislação. Mas isso não funciona no caso das atividades dos Poderes Executivo e Judiciário, que, afinal de contas, também devem ser "demo"craticamente justificadas. O povo ativo decide diretamente ou elege os seus representantes, os quais co-atuam, em princípio, nas deliberações sobre textos de normas legais que, por sua vez, devem ser implementadas pelo governo e controladas pelo Judiciário.
Na medida em que isso é feito corretamente em termos do Estado de Direito, aparece, no entanto, uma contradição no discurso da democracia: por um lado, faz sentido dizer que os governantes, os funcionários públicos e os juízes estariam democraticamente vinculados; mas não faz sentido dizer que, aqui, o povo ativo ainda estaria atuando "por intermédio" de seus representantes. Onde funcionários públicos e juízes não são eleitos pelo povo, a concretização de leis não basta para torná-los representantes deste mesmo povo. O ciclo da legitimação foi rompido, ainda que de forma democrática; mas ele foi rompido. Os vínculos são cortados de forma não-democrática quando a decisão executiva ou judicial for ilegal; aqui, o povo invocado pelo titular do respectivo cargo ("em nome do povo, profiro a seguinte sentença...") produz somente o efeito de um ícone, de um mero passepartout[xxii] ideológico.
No caso já mencionado, ou seja, na decisão defensável em termos do Estado de Direito, o papel do povo apresenta-se diferentemente: como instância de uma atribuição global de legitimidade. Tal papel transcende, na sua abrangência, o povo ativo; abrange todos os que pertencem à nação.
Além disso, as decisões dos órgãos que instituem, concretizam e controlam as normas afetam a todos aqueles aos quais dizem respeito: o "povo" enquanto população efetiva. Uma democracia legitima-se a partir do modo pelo qual ela trata as pessoas que vivem no seu território - não importa se elas são ou não cidadãs, ou titulares de direitos eleitorais. Isso se aproxima, finalmente, da idéia central de democracia: autocodificação, no direito positivo, ou seja, elaboração das leis por todos os afetados pelo código normativo. O princípio "one man, one vote" (pensado em outra acepção) também pode ser compreendido não com vistas a uma camada social específica, mas com vistas à qualidade humana de cada pessoa afetada, independentemente da cidadania. Desse povo-destinatário, ao qual se destinam todos os bens e serviços providos pelo Estado Democrático de Direito, fazem parte todas as pessoas, independentemente, também, de idade, estado mental e status em termos de direitos civis. MÜLLER, Friedrich. Democracia e exclusão social em face da globalização. Op. Cit.
[xxiii] Müller, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia. p. 72.
[xxiv] ATALIBA, Geraldo. O Judiciário e minorias. Revista de informação legislativa, v.24, nº 96, p. 189-194, out./dez. de 1987. Disponível em: < http://www2.senado.gov.br/bdsf/bitstream/id/181799/1/000433557.pdf
[xxv] Müller, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia p. 98.

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...