sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

A celeridade não se alcança sem mecanismos de solução extrajudicial







É louvável o esforço que tem sido feito no sentido de dotar o processo do trabalho de rapidez, a fim de que se cumpra o mandamento da Constituição Federal de duração razoável do processo, à luz de seu artigo 5º, LXXVIII.

Basta lembrar neste sentido a nova Lei 13.015, de 21 de julho de 2014, de iniciativa do Tribunal Superior do Trabalho e cuja aprovação no Congresso Nacional deu-se com o empenho da Presidência do Tribunal Superior do Trabalho. 

A agilização na tramitação dos recursos de revista, com a efetiva uniformização da jurisprudência pelos tribunais regionais, significará sensível redução no prazo de solução de conflitos judiciais trabalhistas.

Não olvidemos, ademais, do Projeto de Lei 606/2011, do Senado Federal, cujo objetivo é imprimir celeridade à fase de execução de sentença no processo do trabalho e que, de igual forma, partiu da iniciativa do Tribunal Superior do Trabalho.

De fato torna-se mais do que necessário dotar o processo do trabalho de celeridade no arbitramento dos conflitos e no cumprimento de suas decisões, devolvendo-lhe a efetividade que já teve em tempos passados, quando o volume de processos em trâmite era razoável, permitindo aos órgãos judiciais dar uma resposta rápida ao jurisdicionado.

Todavia acreditamos que diante do enorme volume de ações judiciais que tramitam nos tribunais, num movimento crescente ano a ano, por mais eficiente que seja o processo judicial, não será possível dar a resposta rápida almejada, como se constata de uns anos para cá, pois impossível a qualquer estrutura judicial responder prontamente ao volume de ações ajuizadas.

Os juízes, desembargadores e ministros vivem o drama de proferir decisões cuidadosas, mas demoradas em razão da avalanche de processos que lhes são submetidos, ou decidir de forma mais rápida, mas sem o cuidado desejado na elaboração da decisão.

A propósito, como noticiou esta ConJur em 23 de janeiro, o Superior Tribunal de Justiça no ano de 2014 julgou quase 400 mil recursos, o que revela o despropositado volume de feitos distribuídos a cada um dos seus trinte e três Ministros, excetuando-se os integrantes da administração, que não têm a atuação judiciária como os demais.

O mesmo se diga em relação ao Tribunal Superior do Trabalho, cujo site dá contra de que no ano de 2012 julgou cerca de 230 mil processos e no ano de 2013 este número subiu para mais de 300 mil recursos, atentando-se ao número de 27 ministros que o compõem, excluindo de igual modo os integrantes da administração do Tribunal.

Basta um simples cálculo para constatar o despropósito do volume de processos atribuídos a cada integrante de um Tribunal Superior, fato este que se reproduz nos Tribunais Regionais, Tribunais de Justiça e no primeiro grau de jurisdição.

Diante desta realidade é importante ressaltar o enorme esforço dos magistrados para minimizar os efeitos da demora na solução dos feitos, mas com graves prejuízos, que se estendem aos servidores do Poder Judiciário, de sua saúde e vida familiar e social.

No âmbito do Poder Judiciário a solução dos conflitos é lenta e assim continuará, não obstante tanto os esforços realizados em relação à estrutura, quanto à dedicação de seus integrantes, pois a obediência ao princípio do devido processo legal (CF, 5º, LIV) exige a observância de determinados atos processuais que somados ao volume excessivo de feitos impede a rápida e segura solução judicial.

Deste modo é preciso criar e utilizar os mecanismos de solução extrajudicial, para desafogar o Poder Judiciário, a fim de permitir que as soluções judiciais sejam seguras e rápidas.

No âmbito do Poder Judiciário Trabalhista é necessário que a grande maioria dos conflitos, que dizem respeito a matéria de fato e a meros cálculos aritméticos, não venha a ser submetida ao crivo do juiz pois é desnecessário, mas sejam solucionados por instâncias extrajudiciais, desafogando a Justiça do Trabalho.

Todavia, para a real eficácia destas formas alternativas de solução dos litígios, é preciso que as partes tenham total segurança quanto à imparcialidade do organismo encarregado da arbitragem, além da certeza de que não será mera formalidade, com posterior questionamento judicial do decidido.

Nesse sentido lembremo-nos das Comissões de Conciliação Prévia, de que se ocupa a Consolidação das Leis do Trabalho, em seus artigos 625-A a 625-H, que diante do momento político em que foram criadas e da forma fixada na lei redundaram em descrédito e fracasso para o fim de agilizar a solução do conflito.

Trata-se de problema de solução difícil, mormente para um país que não tem a cultura da solução do conflito pela auto-composição, nem pela solução extrajudicial.

É preciso implantar organismos seguros e independentes para compor os conflitos trabalhistas, reservando o acesso ao Poder Judiciário aos conflitos mais complexos, cuja solução será mais célere na medida em que o volume de feitos assim permitir.

Contemporaneamente é necessário ensinar à população as vantagens da utilização dos meios extrajudiciais de solução dos conflitos, cuidando-se da segurança dos litigantes, para uma solução adequada, ao mesmo tempo que se combata o preconceito contra os meios alternativos de solução de litígios.

Pedro Paulo Teixeira Manus é ministro aposentado do Tribunal Superior do Trabalho, professor e diretor da Faculdade de Direito da PUC-SP.



Revista Consultor Jurídico, 30 de janeiro de 2015, 8h00

Complexo de Maradona e quando o juiz se nega a reconhecer a nulidade







Diego Armando Maradona é uma figura controversa e, quem sabe, possa nos ajudar a entender a complexidade do reconhecimento de nulidades no processo penal, especialmente quando o juiz não viu ou não quer ver a jogada faltosa. Assim é que o exemplo clássico, no futebol, é o gol de mão de Maradona na Copa do Mundo de 1986, já que embora violando as regras do futebol (não vale gol de mão) foi validado. Vale a pena assistir aqui.

No Brasil, a doutrina diferencia a mera irregularidade (sem violação do conteúdo do ato), da inexistência (por ausência de requisito de sua validade — alegações finais por não advogado ou sentença por não juiz), nulidade relativa e nulidade absoluta. Em relação a essa distinção, também com Aury Lopes Jr. (Direito Processual Penal), pode-se afirmar a insuficiência das categorias e, a partir do processo como procedimento em contraditório, bem assim da reserva de jurisdição, só há nulidade por decisão judicial. Entretanto, o regime de nulidades do CPP (artigos 563-573), além de ultrapassado, é confuso[1]. Adota a compreensão mitológica da verdade substancial (CPP, artigo 566, bem criticada por Salah Khaled Jr.), possui dispositivos revogados noutros locais do próprio CPP (artigo 564, III, “a”, “b”, “c”, III), bem como indica compreensão civilista, incompatível com o devido processo legal substancial, da ausência de prejuízo — pas nullité sans grief (CPP, artigo 563). A ausência de prejuízo é um estelionato processual. Sempre. Assim é que, superada a distinção arbitrária e sem sentido, todas as hipóteses de violação ao devido processo legal substancial serão declaradas nulas[2], manejando-se a noção de doping, conforme sublinhei no livro A Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal.

Confunde-se a má formação do ato com a sanção. A nulidade não é uma sanção, nos diz Robles[3], justamente porque o efeito convencional da regra procedimental do fair play exclui do âmbito dos efeitos válidos o ato realizado em desconformidade com a regra do jogo. Entretanto, o crucial para que isso ocorra é a declaração de nulidade. Sem ela o que se produziu em desconformidade com as regras do jogo, por omissão do juiz condutor do feito, passa a gerar efeitos. Assim é que ganha relevo a existência de juízes cientes do seu papel de garantidores das regras do jogo. Sem o ato declarativo da exclusão, os efeitos das jogadas ilícitas permanecem no ambiente processual e geram efeitos. Como a nulidade somente pode acontecer ex post ao ato, o critério da decisão deve ser um só: na sua constituição o ato atendeu as regras do jogo processual? Com a resposta negativa o ato deve ser declarado nulo. Mas existe magistrado que frauda o ato processual pelos fins, desconsiderando os meios (ilícitos).

O cumprimento da regra de ação pode se dar dentro ou fora dos limites da regra do jogo processual. O descumprimento da regra processual implica na ausência de requisito de validade e, por via de consequência, da não produção do efeito a que se destinava. Não se trata da análise posterior da sua valoração de conteúdo. Na formação da jogada houve descumprimento de regra constitutiva. Se as regras procedimentais da formação válida da ação dos jogadores ou do julgador não são obedecidas, a ação é um nada jurídico e, portanto, descabe discutir a ausência de prejuízo. A noção de prejuízo somente se sustenta para validação de ações processuais ilegais, como se pudesse convalidar os efeitos das ações realizadas com jogo sujo. Os efeitos das jogadas ilegais não encontram respaldo democrático justamente porque seu processo de formação está viciado pelo descumprimento das formas e, com isso, pode ser algo no mundo da vida processual, mas de nenhuma qualificação jurídica válida.

A teoria da ausência de prejuízo (CPP, artigo 593) prende-se a uma noção civilista de aproveitamento de atos incompatível com o processo como garantia do acusado em face do Poder Estatal. Em última instância significa que o Estado estabelece por lei as regras do procedimento, há descumprimento, mas em nome do resultado, especialmente no caso de provas ilícitas, o juiz se demite do seu papel de garante das próprias regras, validando os efeitos do ato viciado. Portanto, não pode ser vista como uma sanção ao jogador e sim como falta que retira os efeitos das consequências do ato em desconformidade com as regras do procedimento. Se as regras do jogo podem ser desconsideradas em nome do resultado, qual o sentido delas? Nenhum. Se o jogador, mesmo ciente da ilicitude, vai adiante no ato irregular por saber que os efeitos podem seduzir o julgador, não se pode mais falar, nem mesmo, de processo penal, mas sim de jogo cínico. Contorna-se o descumprimento das regras procedimentais porque no jogo não há mais juiz, mas sim coadjuvante dos jogadores, diretamente: um juiz interessado no resultado. Em uma afirmação: o juiz só apita para um lado e, portanto, inexiste jogada fora da lei.

Do ponto de vista das táticas, muitas vezes, mesmo com jogo sujo, doping, se o juiz não reconhecer, os efeitos da ação permanecem. Daí muitos arriscarem blefes, trunfos e jogadas dúbias que contam com leniência do julgador. O mais interessante é que o jogo sujo continua a ser jogo até que o juiz declare a nulidade. Então correr os riscos de não ser reconhecido, pelo juiz, o jogo sujo pode ser uma das táticas dos jogadores. Até porque pela ausência de prejuízo, criou-se a lei da vantagem no processo penal, não fosse ela incompatível com o devido processo legal substancial.

O gol de Maradona com a mão foi validado pelo juiz. No Processo Penal muitas jogadas nulas são validadas. Na Copa do Mundo inexiste órgão recursal. No Processo Penal sim. Resta saber se os julgadores terão coragem de anular decisões, principalmente as que contam com amplo apoio popular. O tempo dirá quem pode ser chamado, de fato, de magistrado. Do contrário, la garantia soy yo.

[1] PAULA, Leonardo Costa. As nulidades no processo penal. Curitiba: Juruá, 2013; BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais: elementos para uma crítica da teoria unitária das nulidades no processo penal. Trad. Angela Nogueira Pessoa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003; LOUREIRO, Antonio Tovo. Nulidades & Limitação do Poder de Punir. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010; LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2012; PACELLI DE OLIVEIRA, Eugênio. Curso de Processo Penal: São Paulo: Atlas, 2013; FIORATTO, Débora Carvalho. Teoria das Nulidades Processuais: Interpretação conforme a Constituição. Belo Horizonte: DePlácido, 2013.
[2] SOUZA, Alexander Araujo de. O Abuso do Direito no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007; ABDO, Helena Najjar. O abuso do processo. São Paulo: RT, 2007; DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Rocoo, 1997; BARBOSA, Livia. O jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.
[3] ROBLES, Gregorio. As regras do direito e as regras dos jogos: ensaio sobre a teoria analítica do direito. Trad. Pollyana Mayer. São Paulo: Noeses, 2011, p. 182.


Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.



Revista Consultor Jurídico, 30 de janeiro de 2015, 8h01

Advogado não pode ser processado por conteúdo de parecer jurídico






Convicções jurídicas apresentadas em pareceres não podem ser usadas para responsabilizar um advogado. Assim entendeu a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, na última quarta-feira (28/1), ao trancar Ação Penal contra um advogado comissionado da Câmara Municipal de Cuiabá.

Segundo o Ministério Público, ele integrou uma organização criminosa que desviava verbas do Legislativo municipal e usava uma gráfica para conseguir notas frias. A denúncia baseava-se em um parecer jurídico, assinado por Rodrigo Terra Cyrineu, que foi favorável à contratação da empresa suspeita. De acordo com a acusação, o advogado deixou de apontar ao menos dez irregularidades encontradas no procedimento.

O réu havia tentado conseguir absolvição sumária (antes do julgamento do mérito), mas o pedido foi negado pela juíza responsável pelo processo. O trancamento foi então solicitado pela seccional da Ordem dos Advogados do Brasil em Mato Grosso. Para o presidente da entidade, Maurício Aude, o profissional estava sendo “criminalmente perseguido por ter simplesmente oferecido um parecer jurídico num procedimento administrativo sem qualquer indício de dolo ou fraude”.

Livre conclusão
“Não há crime algum em emitir parecer jurídico não vinculativo, ainda que suas conclusões não sejam as mais adequadas [o que se diz para fundamentar], pois ao advogado é dado o livre exercício profissional e liberdade em suas convicções e conclusões”, afirma o pedido de Habeas Corpus assinado por Aude e pelo secretário-geral adjunto da OAB-MT, Ulisses Rabaneda dos Santos.

Eles dizem que “processar um advogado por ter emitido parecer jurídico, posteriormente utilizado para eventual ato ilícito praticado por terceiro, é o mesmo que processar um juiz por delito praticado por pessoa que ele livrou do cárcere com fundamentos jurídicos inadequados”. Ambos apontaram que o parecer não era peça fundamental para a liberação dos serviços gráficos.

Citaram ainda jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que considera abusiva a responsabilização de advogados públicos, “salvo demonstração de culpa ou erro grosseiro, submetido às instâncias administrativo-disciplinares ou jurisdicionais próprias”. O relator do caso, desembargador relator Juvenal Pereira da Silva, concordou com os argumentos e foi seguido por unanimidade. O acórdão ainda não foi publicado. Com informações da Assessoria de Imprensa da OAB-MT.

Clique aqui para ler a petição.
Processo: 0157630-54.2014.8.11.0000

Revista Consultor Jurídico, 29 de janeiro de 2015, 16h51

Obra civil de grande vulto descaracteriza pequeno empreiteiro e afasta competência da Justiça Trabalhista






*publicada originalmente em 05/06/2014 


O inciso III do artigo 652 da CLT fixa a competência do juiz do trabalho para conciliar e julgar "os dissídios resultantes de contratos de empreitadas em que o empreiteiro seja operário ou artífice". O objetivo do legislador aí foi proteger o pequeno empreiteiro, que quando não trabalha sozinho, tem poucos ajudantes. Entretanto, se as obras civis forem de grande vulto, semelhantes a atividade empresarial, a Justiça do Trabalho não será competente para processar e julgar os conflitos que dali surgirem, uma vez que já se trata de atividade economicamente organizada.

Com base nesse entendimento, expresso no voto do desembargador Paulo Roberto de Castro, a 7ª Turma do TRT mineiro negou provimento ao recurso de um empreiteiro e manteve a sentença que declarou a incompetência da Justiça do Trabalho para processar e julgar a ação proposta por ele contra uma empresa de empreendimento imobiliário. Na inicial, ele informou que foi contratado para construir 83 casas, no valor aproximado de R$280.520,00. Alegou que as medições não foram integralmente quitadas, existindo valores retidos pela empresa reclamada. A ré se defendeu, argumentando que tudo foi pago, não havendo saldos a quitar.

O Juízo de 1º Grau pronunciou, de ofício, a incompetência material da Justiça do Trabalho para processar e julgar a ação, declinando a competência para a Justiça Estadual Comum. Inconformado, o reclamante interpôs recurso, questionando a incompetência declarada. Ele alegou que trabalhava pessoalmente em todas as obras, não podendo o valor total da empreitada servir como critério para definição de pequeno empreiteiro.

Em seu voto o relator esclareceu que, antes da Emenda Constitucional nº 45 de 2004, o artigo 652 da CLT já previa a competência do juiz do trabalho para conciliar e julgara "os dissídios resultantes de contratos de empreitadas em que o empreiteiro seja operário ou artífice". Ressaltou que o objetivo da norma é proteger o pequeno empreiteiro que trabalha sozinho como operário ou artífice, sem a ajuda de empregados ou com poucos ajudantes.

Mas, no caso, de acordo com o relator, a prova testemunhal demonstrou que o reclamante dirigia a prestação de serviços de 15 empregados que, embora contratados pela reclamada, eram pagos pelo reclamante. O magistrado frisou que a prova produzida e o valor expressivo do contrato entre as partes levaram à conclusão de que a atividade do reclamante mais se assemelha à do empresário e não à do pequeno empreiteiro, afastando, dessa forma, a competência da Justiça do Trabalho.


Fonte: TRT3

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Em Pindorama, furtar R$ 100 é mais grave que sonegar R$ 19.999!




Bem jurídico-constitucional?
Antes, uma advertência: a coluna não está sendo escrita para polemizar com a autoridade x ou y ou criticar stricto sensu uma dada decisão (existem centenas de decisões desse jaez). A decisão sob comento é apenas um pano de fundopara uma análise da questão maior que é a isonomia e a ausência de uma teoria do bem jurídico constitucional em nosso país. Por isso, afasto desde logo qualquer perspectiva de fulanização.

Sigo, então. Um ano após a Constituição de 1988 escrevi um artigo na antiga Revista do Instituto de Direito (ID) sustentando que o novo paradigma constitucional necessita de uma filtragem hermenêutica. Dizia então que, por exemplo, não era mais possível que os delitos de sonegação de tributos tivessem um tratamento tão generoso se comparados aos delitos cometidos pelo andar de baixo como o furto, apropriação e estelionato. Já escrevi bastante sobre isso aqui.

Não que eu quisesse que se arrebentasse com os sonegadores. O que eu queria era que fosse apenas aplicada a isonomia e a equanimidade. Por que o agente que pratica furto tem tratamento mais gravoso que o que sonega tributos?

Ainda em 1996 — assumindo o cargo de Procurador de Justiça junto ao TJ-RS— emiti parecer que foi integralmente transcrito no voto do relator de uma apelação criminal em que opinei pela extinção da punibilidade da prática de um furto, fundamentado no princípio constitucional da isonomia, apontando que deveria a patuleia receber o mesmo benefício dado ao sonegador fiscal pelo artigo 34 da lei 9.249/95 (leia aqui). Vejam: no caso, nem houve a devolução espontânea. Já dizia eu — há quase 20 anos atrás— que isso era irrelevante (o artigo e o acórdão explicam as razões disso). Depois continuei sustentado a tese, aplicada até mesmo em casos de estelionato (íntegra aqui) em que ficou constatada ausência de prejuízo ou devolução do valor. Isonomia é para todos, pois não?

Novas invenções jurídicas
Pois parece que a sonegação de tributos é a menina dos olhos de quem pratica a tese em terrae brasilis do enunciado La ley es como la serpiente; solo pica al descalzos. Iria colocar a frase no título da coluna. Mas o Conjur não quer títulos em outra língua.

Sim, ao lado da absurda discrepância entre o tratamento dado ao furto sem prejuízo e à possibilidade de pagamento do tributo pelo sonegador mesmo após o transito em julgado (sim, há caso de extensão do favor legis, com parecer favorável do MPF —, em um caso envolvendo o grande filósofo contemporâneo Marcos Valério — Recurso Especial 942.769 ler aqui), surgiu outro favor aos sonegadores, agora não mais por lei inconstitucional e, sim, por Portaria.

Magnífico. Uma Portaria do Ministério da Fazenda tem o poder de descriminalizar condutas (aliás, na AP 470, uma Circular do Banco Central absolveu um dos acusados, ao “descriminalizar” a conduta!). Também já denunciei isso em várias oportunidades. Leio agora que a Justiça Federal de segundo grau (TRF) decidiu que não cabe ação penal nas hipóteses em que o valor sonegado é inferior a R$ 20 mil. Diz o Poder Judiciário federal que, em face da Portaria 75/2012, não cabe acolher denúncia sobre sonegação, mesmo que, com os juros e multa, a cobrança feita pelo órgão de recolhimento (Poder Executivo) ultrapasse a quantia mínima prevista na norma. E concedeu liminar em Habeas Corpus suspendendo o curso da ação penal que o Ministério Público Federal moveu contra sócios de uma empresa por não recolherem R$ 17.993,95 em Imposto de Renda (crime previsto no artigo 2°, II, da Lei 8.137/90).

Enquanto isso, nos quatro cantos do país, milhares — e põe milhares nisso— de patuleus são processados por crime de furto de merrecas, sendo que sequer até hoje conseguimos firmar uma doutrina sobre o princípio da insignificância. Para alguns, aliás, ele nem existe (como se viu na prova de Concurso para o MP de MG). Pior: são processados furtadores de ninharias e condenados aos borbotões. Já se for sonegação, a coisa muda de figura, porque existe uma portaria do Ministério da Fazenda a ser (ab)usada. Minha pergunta: não dá para fazer uma Portaria a favor de quem furta? Ou o furto é crime mais grave que sonegação de tributos? Houve um tempo em que, como estavam fazendo Refis para sonegadores (ainda continuam fazendo) e com isso escapavam do crime, propus que se fizesse um Refis-para-a-patuleia. Dar a oportunidade para o ladrão de botijão de gás pagar a res furtivae em suaves prestações (bancadas pela Viúva e pelo BNDES).

De todo modo, talvez isso seja assim porque nenhum de nós, do andar de cima, tem amigos ladrões. No máximo, temos amigos sonegadores e lavadores, disfarçados no meio das festas que frequentamos. Questão de classe social (ou de estamentos, diria Faoro). Ninguém diz: “— Ah, meu amigo foi processado por ter furtado um botijão de gás”. Isso é para a gente que não usa botas. Nós, que usamos cano longo (Sete Léguas), estamos imunes a isso. Mas há várias situações do tipo: “— Ah, um amigo acaba de receber habeas corpus porque sonegou tributos, mas ficou ao abrigo de uma Portaria do Ministério da Fazenda”. Bingo!

Qual é o recado que o Estado (lato sensu) dá? Tributos até R$ 20 mil não vale a pena pagar, por duas razões: a uma, o governo não cobrará, porque não vale a pena; a duas, porque, se não vale a pena cobrar, também não vale a pena processar criminalmente; é o que se chama “insignificância diferida” ou “insignificância por efeito colateral”. Uma pergunta: está sobrando dinheiro no governo federal? Os procuradores que tratam disso não se insurgem? Lembro a todos que no Brasil tem uma coisa — que pode até não ter importância — que se chama Constituição. E tem outra coisa chamada “controle difuso”. E mais ainda: ninguém é obrigado a cumprir ordens flagrantemente ilegais. E a tal Portaria o é, pois não? Queria ver uma Portaria do Ministério da Justiça dizendo que furtos quetais não deveriam ser perseguidos... Todos diriam: céus, que inconstitucionalidade. Pois é!

Insisto: Que poderoso “legislador” que é esse Ministério da Fazenda deterrae brasilis... Emite uma Portaria para otimizar as cobranças da Viúva e o Judiciário pega a diretiva e a aplica para descriminalizar condutas. A questão é saber se isso é constitucional, se não fere a isonomia, a relação entre os poderes e a legalidade... Isso para dizer o mínimo. Para mim, há uma grave inconstitucionalidade. Ou mais de uma.

Para sofisticar um pouco: se não há inconstitucionalidade pelo aspecto mais ortodoxo, quem sabe uma inconstitucionalidade pelo viés da proibição de proteção insuficiente do bem jurídico (a Untermassverbot)? Não estaria o Judiciário protegendo de forma insuficiente um bem jurídico e, ao mesmo tempo, “protegendo em demasia” (Übermassverbot — princípio da proibição de excesso) os casos de furto?

Isonomia: eu quero uma para viver!
Fica aqui minha reflexão em relação a isso. Até nem quero que parem de aplicar a Portaria em favor dos sonegadores, descaminhantes e contrabandistas. Apenas quero que se lembrem dos choldreus que respondem por furtos cujos valores, por vezes acima de R$ 100, 200 ou 250, já nem tem direito à insignificância (ler aqui). E se devolver a res furtivae, não é aplicado ao furtador o favor legis da Lei que prevê que o pagamento do tributo sonegado até a denúncia (e a jurisprudência espichou isso para mais longe, como vimos acima) está isento do crime. Isonomia: eu quero uma para viver, para parafrasear uma música do Cazuza. Ou se dá benesse para todos ou para ninguém. Simples assim! Doa a quem doer.

Post scriptum 1: para os críticos de plantão e que sempre escrevem contra, independentemente do conteúdo da coluna, aviso que trabalho nisso desde 1988; não “descobri a pólvora” ontem ou anteontem. Obedeço a mim mesmo: coerência e integridade, aliás, na linha de uma de minhas emendas que vingou no novo CPC (artigo 924).

Post scriptum 2: Sim, sei que há inúmeros casos de pequenos sonegadores, assim como pequenos furtadores. Não é disso que se trata. Falo apenas da equanimidade que deve ter o legislador e o aplicador da lei. Fairness: eis a palavra!

Post scriptum 3: Não, nada mais me surpreende. Leio nos jornais que o doleiro Youssef pode ter lucro de até R$ 10 milhões com a delação-bota-premiada-nisso. Fantástico, não? (Sim, sei que houve desmentido — parte do dinheiro do “prêmio” iria para as filhas e a outra é para descontar da dívida; mas que é prêmio, é).1 Em relação à pena: o doleiro pegaria 250 anos e se reduz para 3. Qual seria a criteriologia para um acordo que reduz uma pena de 250 para 3 (ou 5)? Essa pena é igual a uma que um furtador de chocolates recebeu aqui no RS há poucos dias. Bom: ele não tinha direito à delação. Azar dele. Isonomia...

1 Reproduzo nota do MPF: “4. O acordo apenas prevê o abatimento do valor da multa, limitado ao valor de um de seus imóveis, na proporção de dois por cento dos valores e bens que o acusado vier a auxiliar com exclusividade na localização; 5. O abatimento será limitado ao valor de um de seus imóveis, que será avaliado/leiloado ao final da colaboração; 6. O valor apurado será abatido do valor do imóvel, e não retornará ao doleiro Alberto Youssef, mas será entregue em proporções iguais para suas filhas”. O jornalista Janio de Freitas publica na Folha de S.Paulo de 27 de janeiro, interessante artigo denominado Modo de Dizer (ler aqui), contestando o que está na nota do MPF. Ele pergunta: Procuradores e juízes que negociam delações podem ceder direitos financeiros da União e da Petrobras? O leitor que julgue!

Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.



Revista Consultor Jurídico, 29 de janeiro de 2015, 8h00

Defeitos do projeto do Código Penal comprometem sua viabilidade







Tramita há dois anos o Projeto de Lei do Senado (PLS) 236/12, de autoria do senador José Sarney, voltado a instituir um novo Código Penal (CP)[1]. A má qualidade da reforma não impede que ela, à sua passada trôpega, prossiga, especialmente ante o espírito reformista que ronda a atual conjuntura — vide a recente reforma do Código de Processo Civil e o discurso de posse da Presidente da República[2]. Em dezembro do ano passado, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado apresentou o seu relatório final. O texto revisado seguiu para votação naquela casa legislativa no dia 17 de dezembro de 2014, tudo ao apagar das luzes da sessão legislativa e sem alarde. Pela colaboração de contingências, ocorreu pedido de vista, o que nos oferece a chance de questionar a viabilidade dessa reforma.

A afirmação de que o projeto não tem salvação e não merece qualquer esforço de aperfeiçoamento não é nova[3]. No entanto, passados dois anos de trabalho, aquela afirmação talvez contrarie o senso comum: simplesmente engavetar o projeto não seria desperdício do tempo e esforço já despendidos? O próprio senso comum, contudo, acomoda a intuição de que, em certas hipóteses, a tentativa de restaurar ou aproveitar algo visceralmente defeituoso é menos proveitosa do que recomeçar do zero — pense-se na perda total de veículos acidentados. Assim, a pergunta a ser respondida é: quais defeitos ostenta o PLS 236/2012 que, de tão graves, comprometem-lhe inteiramente a viabilidade?

I. Os defeitos da última versão do PLS 236/12
É possível discorrer indefinidamente sobre os defeitos desse projeto. O mais visível é o desleixo com que foi elaborado — defeito perceptível em cada linha do PLS 236/12, apesar das duas revisões que sofreu. O produto final que deve seguir para a votação apresenta graves defeitos de revisão técnica (1.); é composto por uma Parte Geral altamente defeituosa (2.); é fruto de uma transposição acrítica das leis extravagantes (3.) e, por fim, não obedece a qualquer técnica legislativa uniforme (4.).

1. Revisão técnica deficitária
O que se vê no texto final são incoerências internas gravíssimas (o crime de incêndio em matas e florestas, por exemplo, é previsto duas vezes, e com penas diferentes: artigos 196, parágrafo 1º, inciso V, e 415), mas sobretudo cominação de penas desproporcionais, tanto para mais como para menos: a peita do artigo 304 é mais severamente punida do que a falsa perícia do artigo 303, embora o perito preste um compromisso pelo qual contrai um dever especial que não onera quem o suborna; a submissão de doente mental à prostituição (artigo 195) sofre apenas metade da pena do próprio abuso sexual desse mesmo doente mental (artigo 192); a esterilização forçada (artigo 128), prevista erradamente como crime contra a vida, sofre pena menor do que as lesões corporais qualificadas pela perda permanente de função orgânica (artigo 129, parágrafo 3º, inciso I), como se a função reprodutiva fosse menos importante que as demais. A previsão do novo crime de transgenerização forçada, que é comum e não hediondo (artigo 41), inclui a punição de toda pessoa que toma conhecimento do fato e não o denuncia (artigo 191, parágrafo 4º) — punição verdadeiramente extraordinária, que a Constituição havia reservado para os crimes hediondos (artigo 5º, inciso XLIII, de interpretação discutível) e que sequer estes próprios, no projeto, recebem. O favorecimento pessoal no terrorismo (artigo 246) sofre uma antecipação de punibilidade (“dar guarida a pessoa […] que esteja por praticar crime de terrorismo”) que não se previu nem para o próprio terrorismo (artigo 245). Ocorreu, ademais, o nivelamento de condutas fundamentalmente diversas: o crime de omissão de socorro (artigo 137), que é passível de cometimento por qualquer pessoa, recebeu a pena de dois a quatro anos — a mesma do abandono de incapaz (artigo 136), que é delito exclusivo de quem possui um dever prévio de cuidado e é obviamente mais grave; a pena mínima da calúnia (artigo 141) e da difamação (artigo 142) é a mesma, embora na primeira o fato imputado, mais do que desonroso, seja criminoso; a pena mínima das lesões corporais seguidas de morte é idêntica à das lesões graves de 3º grau (artigo 129, parágrafos 4º e 3º, respectivamente), conquanto nestas últimas a vítima sobreviva.

Os deslizes técnicos parecem infinitos: afirma-se que a pena de multa será aplicável a todo e qualquer crime (artigo 65), mas vários crimes têm previsão expressa da aplicação cumulativa ou alternativa de multa (por exemplo os artigos 155 e 203, parágrafo 1º; sobre os crimes de tóxicos ver adiante no texto). Ora se diz que as penas alternativas serão aplicadas no número de uma (artigo 51) ou duas (artigo 59, parágrafo 2º), ora que podem ser mais de duas (artigo 58, parágrafo 2º). O projeto admite a retratação da injúria (artigo 147), embora nesta não haja uma afirmação ou imputação de fato determinado, mas o insulto puro e simples, e a ideia de retratação seja impertinente. O texto projetado, não satisfeito em equiparar a energia elétrica a coisa móvel, como faz o CP vigente (o que tem uma explicação histórica[4]), estende a equiparação à água ou gás canalizados, que óbvia e indiscutivelmente são coisas móveis — algo como equiparar-se um bebê ao conceito de pessoa; contém disposições inconciliáveis sobre aborto, que ora parecem incluir em sua definição a morte do feto (artigo 126, parágrafo 1º), ora parecem dispensá-la (artigo 129, parágrafo 2º, inciso VI, e parágrafo 3º, inciso II); chama o “mandato criminal” de “mandado” (artigo 38); prevê norma sobre a fixação de alimentos em favor da vítima (artigo 76) de natureza puramente processual que sequer deveria constar de um projeto de CP, e mesmo nele se encontra fora de lugar (pois concerne aos efeitos da condenação, e não à determinação da pena); o crime de exploração do trabalho infanto-juvenil tem um efeito da condenação oponível ao Poder Público (artigo 494, parágrafo 1º, inciso I: dever do Estado de indenizar a vítima) de impossível efetivação processual — a menos que se introduza no Código de Processo Penal alguma forma de intervenção de terceiros; trata a proibição da revista íntima do visitante como um “direito do preso” (artigo 53, parágrafo 1º). O crime de rixa, rebatizado de confronto generalizado, tem forma qualificada “se o confronto for entre grupos ou facções organizadas” — uma contradição em termos (artigo 135, parágrafo único). Por fim, há passagens simplesmente incompreensíveis, como o crime de “ingressar a entrada indevida (?) de aparelho telefônico em estabelecimento prisional” do artigo 311.

Não são filigranas: cada palavra errada da lei penal pode significar meses ou anos de encarceramento. Tais erros, quando muito, são aceitáveis num primeiro rascunho, mas não após a revisão final. O reformador, contudo, simplesmente ignora a diferença entre projeto, esboço e rascunho.

2. Equívocos graves no coração do Código Penal, a Parte Geral
Na Parte Geral, os defeitos já foram referidos em outros estudos mais detidos, e a versão da CCJ só fez mantê-los.

Assim, se o atual CP contém uma definição inútil de crime consumado (atual artigo 14, inciso I), no projeto ela vem acompanhada de uma definição muito ruim de tentativa (artigo 21). No concurso de pessoas, o projeto, sem abandonar o texto dos dispositivos vigentes (artigo 29 e seguintes), insere uma avalanche de palavras inúteis que atingem exatamente os mesmos resultados práticos da lei atual (artigos 36 e seguintes). O tratamento da responsabilidade penal das pessoas jurídicas no PLS é confuso: no rol de penas para pessoas naturais (artigos 42 e 58), a expressão “pena de restrição de direitos” engloba tudo que não seja prisão ou multa, inclusive prestação de serviços à comunidade; já na relação das penas próprias das pessoas jurídicas, a expressão “pena de restrição de direitos” tem outro significado, pois é posta ao lado da prestação de serviços à comunidade (artigo 71), a qual, por sua vez, inclui para as pessoas jurídicas penas de conteúdo econômico que nada têm de “prestação de serviços”, como “custeio” e “contribuições” (artigo 73, incisos I e IV). Utilizando mal o CP vigente como gabarito, o projeto segue mencionando a ação penal pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça (artigo 97, parágrafo 1º), embora a Parte Especial do PLS 236/12 não preveja um só crime cuja persecução esteja sujeita a tal condição. Há ainda erros que, se é verdade que existem no direito vigente, foram mantidos ou radicalizados no PLS 236/12, como a previsão de espécie de “prisão por dívida” (artigo 44, parágrafos 5º e 47, parágrafo único, que universalizam a discutível regra do artigo 33, parágrafo 4º, do CP vigente) que, além de ilegítima, atinge mais o desvalido, menos o opulento, e a pluralidade de penas de conteúdo econômico (multa, prestação pecuniária, perda de bens e valores) criada pelas reformas do CP de 1984 e 1998, sem razão suficiente que a justifique.

Tais defeitos não se situam em áreas marginais, mas no coração do Direito Penal, algo comparável ao engenheiro incapaz de realizar um cálculo integral.

3. Transposição acrítica das leis extravagantes para o interior do Código
Poder-se-ia mencionar a vantagem de que, ao menos, todas as incriminações constam de um só documento. O que houve, contudo, foi uma transposição acrítica daquelas leis extravagantes, que vagavam errantes pelo mundo das leis especiais e que agora são alçadas ao plano nobre do Código.

Os exemplos pululam: tal foi o caso dos crimes relativos a loteamentos (atual Lei 6.766/79) e contra as relações de consumo (artigo 7º e seguintes da Lei 8.137/90) . O fato de que seria preciso revisar tais incriminações para integrá-las, evitando repetições e superposições, não foi sequer cogitado pelo reformista, o qual, no relatório da CCJ, confessou haver promovido poucas alterações nos dois grupos de crimes supracitados justamente porque se tratava de simples “compilação” (p. 86, relatório da CCJ). No caso das leis antitóxicos (11.343/06), de tortura (9.455/97) e de racismo (7.716/89), a incorporação pura e simples de seus textos ao projeto, sem a necessária revisão técnica (item 1 acima) produziu resultados aberrantes. Como se sabe, o CP vigente prevê os limites mínimos e máximos da pena de multa na Parte Geral; já a lei antitóxicos, conjugando o sistema dos dias-multa com o critério original do CP (antes da reforma de 1984) de prever multas diferentes para cada crime, comina uma multa específica a cada infração nela prevista. O projeto, por sua vez, simplesmente imita cada uma das referidas leis, mantendo para a generalidade dos crimes as regras da fixação da multa da Parte Geral, mas adotando para os crimes de tóxicos penas de multa específicas (artigos 220 e 221). Não houve, igualmente, qualquer reflexão acerca do posicionamento das diversas matérias: o delito de guardar lixo hospitalar (artigo 134), por exemplo, figura entre os crimes contra a pessoa, embora seja claramente um crime de perigo comum, pois não atinge uma vítima determinada.

Desprovido da “habilidade de um mosaísta” de Vicente Piragibe[5], o reformador atual produziu um desastroso pasticho.

4. Má técnica legislativa
Outra consequência natural do propósito uniformizador da reforma é a adoção de uma técnica legislativa minimamente uniforme, que faça do Código mais do que um amontoado de dispositivos. As incriminações do CP, como se sabe, principiam com o verbo típico: matar alguém, subtrair coisa alheia móvel. Na legislação extravagante tal critério nem sempre é adotado: as atuais leis de tortura e de racismo, por exemplo, introduzem incriminações com o estribilho “constitui crime”. O projetista não teve o menor pudor em simplesmente reproduzir aquelas vigentes definições, cujo estilo é manifestamente incompatível com o esforço consolidador.

5. O diagnóstico
O relatório da CCJ é diagnóstico definitivo sobre o despreparo geral do reformador, que ostenta o seu desleixo como se portasse medalha. Sequer a pergunta elementar, sobre quais seriam os defeitos técnicos do CP atual, foi formulada, com o que qualquer alteração se transforma em diletante exercício estilístico, capaz de exultar apenas alguns ávidos manualistas, venais mais do que sérios. Do ponto de vista técnico, o CP atual é infinitamente superior ao projeto ora apresentado.

Atestar o desleixo do reformador não significa apenas discordar pontualmente das opções escolhidas, mas diagnosticar a incapacidade para sequer apresentar um documento que mereça o nome de projeto de CP. Poder-se-ia generosamente relembrar nosso escriba soberano: “Quem tem outros merecimentos, pode claudicar uma vez ou duas”[6] — mas simplesmente não há merecimentos dignos de nota. Eventuais e pontuais acertos existentes, como a supressão do autoritário crime de desacato, permanecem infinitesimais diante do mar de equívocos.

II. Há salvação para o PLS 236/2012?
A resposta depende do que se entende por salvação. Se o leitor considera que: a) reunir a legislação que o projeto se propõe a substituir; b) cotejá-la com o texto apresentado; c) identificar inúmeras inconsistências e resolvê-las; d) ordenar as infrações segundo suas penas e ajustar estas últimas de modo a garantir que aos crimes mais graves correspondem punições mais severas; e) localizar na literatura escrita a propósito do Código atual ao longo de setenta anos as principais críticas e verificar se elas foram resolvidas no projeto, dando solução adequada às que foram ignoradas; f) retificar a redação dos incontáveis dispositivos mal enunciados; g) posicionar melhor as matérias —, enfim, se o leitor, já de posse do fôlego, considera que tudo isso é salvar o projeto, então talvez este tenha salvação. De nossa parte, cremos que isso é escrever um novo projeto, e que é mais seguro e produtivo fazê-lo a partir do zero. Basta o dado de que todos os erros técnicos mencionados não foram sequer percebidos em dois anos de trabalhos revisionais. Um projeto de lei obscuro e confuso não se embarga; arquiva-se. Não há salvação para o PLS 236/12.

O pianista Artur Schnabel escreveu que as sonatas de Beethoven são melhores do que é possível executá-las[7]. O PLS 236/12, por sua vez, é pior do que é possível descrevê-lo. Estamos diante do pior projeto de Código Penal de nossa história republicana. A vingar, virá ao mundo clamando por reforma: a marca registrada de um fracasso legislativo. 







[3] Ver o livro publicado pela editora Atlas: Leite (org.), Reforma Penal. A crítica científica à Parte Geral do Projeto de Código Penal (PLS 236/12), 2015, no qual tomam parte Adriano Teixeira, Juarez Cirino dos Santos, Juarez Tavares, Luís Greco, Miguel Reale Jr, Paulo Busato, René Dotti e os dois subscritores deste artigo.


[4] Hungria, Comentários ao Código Penal, v. I, t. I, 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 21.


[5] A frase é de Nélson Hungria, op. cit., p. 59, nota 12 (iniciada na p. 39), em referencia à Consolidação das Leis Penais de 1932.


[6] Machado de Assis, Crônicas escolhidas, Organização: John Gledson, Companhia das Letras, São Paulo, 2013, p. 286.


[7] Em verdade, não foi isso que ele escreveu literalmente, mas é possível interpretá-lo dessa forma. Veja-se, p. ex., http://www.wgbh.org/articles/A-Month-of-Beethoven-7469 .

Alaor Leite é mestre e doutorando em Direito pela Universidade Ludwig Maximilian, de Munique.

Gustavo Quandt é defensor público federal e mestrando em Direito na UFPR.



Revista Consultor Jurídico, 28 de janeiro de 2015, 6h37

Suprema Corte dos EUA vai decidir se juízes podem solicitar contribuições eleitorais







A seccional da Florida da American Bar Association iniciou um processo disciplinar contra a juíza Lanell Williams-Yulee, em 2009, porque ela assinou uma carta pedindo contribuições para sua campanha de reeleição e colocou uma solicitação em seu website. No final, a juíza foi repreendida e condenada a pagar US$ 1.860 em custas judiciais. A juíza entrou na Justiça contra a seccional da ABA e a ação chegou à Suprema Corte dos EUA recentemente.

Na semana passada, a Suprema Corte fez a primeira audiência para ouvir e discutir os argumentos dos advogados da juíza e da seccional da ABA. A lei da Flórida proíbe os juízes de participar, pessoalmente, de atividades de levantamento de fundos para suas campanhas eleitorais, de acordo com o jornal The New York Times e a Nation Public Radio.

Porém, a juíza alega que essa lei é inconstitucional, porque viola seu direito à liberdade de expressão — um conceito que a própria Suprema Corte elaborou, quando decidiu que empresas podem fazer contribuições ilimitadas em campanhas eleitorais para o legislativo e para o executivo.

Dos 50 estados americanos, 39 escolhem seus juízes através de eleições. Desses, 30 estados proíbem solicitações pessoais dos juízes, de forma que o levantamento de fundos de campanha só pode ser feito por comitês eleitorais.

O advogado Andrew Pincus, um dos representantes da juíza, disse aos ministros que a lei da Flórida proíbe os juízes de solicitar contribuições, mas permite que eles conheçam quem foram os doadores e até mesmo agradecê-los. Em outras palavras, eles podem dizer “obrigado”, mas não podem dizer “por favor”, ele alegou.

Alguns ministros da ala liberal da corte consideram que os juízes têm o direito de agradecer, polidamente, as doações. No entanto, a solicitação de dinheiro, pessoalmente, fere a dignidade do Judiciário, compromete os ideais de independência e de imparcialidade dos juízes. Para eles, de alguma forma o poder Judiciário é diferente dos outros poderes.

Os ministros da Suprema Corte são indicados pelo presidente da República e não eleitos. No entanto, para a ministra Sonia Soutomayor, os advogados, os escritórios de advocacia e as corporações que atuam na jurisdição são maiores contribuintes. Assim, pedir dinheiro a eles “envolve um elemento de coerção”.

“Pela minha própria experiência, os advogados não negam nada que um ministro pede, seja para que sirvam em um comitê, ajudem a organizar alguma coisa ou o que quer que seja”, ela disse aos demais ministros e aos advogados das partes, durante a audiência.

Ela apresentou estatísticas que mostram que, nos estados em que é permitido aos juízes solicitar pessoalmente contribuições eleitorais, os montantes arrecadados são bem superiores ao que se apura nos estados em que o levantamento de fundos só pode ser feito através de comitês eleitorais.

A decisão da Suprema Corte será conhecida dentro de algum tempo. Mas já se sabe que o resultado mais provável será o costumeiro cinco votos a quatro. Serão quatro votos dos ministros liberais a favor da lei da Flórida e, portanto, contra a juíza e quatro dos cinco votos conservadores contra a lei e, portanto, a favor da juíza. O voto decisivo, como sempre, será o do ministro Anthony Kennedy. A temporada de apostas sobre o voto do ministro Kennedy está aberta.
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João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.



Revista Consultor Jurídico, 28 de janeiro de 2015, 10h00

Esforços de empresa para preencher vagas com pessoas com deficiência são levados em conta para exclusão da multa fiscal





*publicada originalmente em 25/03/2014 


O artigo 93 da Lei nº 8.213/1991 dispõe que as empresas com 100 ou mais empregados estão obrigadas a preencher de 2% a 5% dos seus cargos com empregados reabilitados pelo INSS e/ou com deficiência. Se a empresa descumpre essa norma, ela pode ser autuada por fiscais do Ministério do Trabalho e será obrigada a pagar multa, além de ter seu nome inscrito na dívida ativa. Foi o que aconteceu a uma construtora, autuada por falta de comprovação do preenchimento total de reserva legal por empregados com deficiência e/ou reabilitados pelo INSS.

Após a autuação, a empresa ajuizou ação trabalhista contra a União Federal requerendo a suspensão de sua inscrição na dívida ativa, sob a alegação de que se esforçou para cumprir a lei, tendo feito várias publicações em jornais e colocado faixas nas ruas convocando pessoas com deficiência para fazer parte de sua equipe de trabalho. Mas, mesmo com tudo isso, só conseguiu preencher três vagas.

Ao julgar o caso na Vara do Trabalho de Santa Luzia, o juiz Antônio Carlos Rodrigues Filho, analisou o contrato social da empresa e apurou que ela atua no ramo da terraplenagem, pavimentação, saneamento, canalizações subterrâneas, locação de máquinas e equipamentos de terraplenagem e construção civil. Ele destacou que as provas demonstraram o esforço da empresa para tentar cumprir o artigo 93 da Lei nº 8.213/1991, como publicações em jornais de grande circulação no Estado no dia 28/07/2010, em que oferecia vagas para deficientes físicos, bem como publicações em jornal local, no período de 17 a 31/01/2011. Um dos contratados, ouvido como testemunha, informou que soube da vaga através de sua mãe, que viu uma faixa na rua convocando pessoas com deficiência para trabalhar na empresa.

O juiz sentenciante destacou que a atividade da empresa reclamante dificulta a possibilidade de contratação de deficientes e habilitados em razão dos próprios riscos inerentes ao tipo de trabalho desempenhado por seus empregados, bem como a necessidade de capacitação profissional ou treinamento prévio para desempenhar as tarefas. E essa formação é praticamente inexistente no país, que carece de cursos que ofereçam essa formação técnico-profissional específica aos portadores de deficiência, para que estes possam ocupar essas vagas que vêm surgindo no mercado de trabalho em consequência da lei.

No entender do magistrado, não houve violação ao artigo 93 da Lei nº 8.213/1991, uma vez que a empresa comprovou as várias tentativas para atender à cota legal, não tendo contratado a cota mínima de empregados com deficiência ou reabilitados por motivos alheios à sua vontade, por absoluta falta de candidatos aptos a exercer as funções existentes em seu quadro social. Por essa razão julgou procedente o pedido e declarou inexigível a multa aplicada pelo descumprimento legal em questão, determinando a retirada do nome da empresa das inscrições da dívida ativa.

A União Federal recorreu, mas o TRT-MG manteve a decisão de 1º Grau.( 0000324-36.2013.5.03.0095 AIRR )
Fonte: TRT3

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Pai de sócia que integrava sociedade de forma oculta responderá pela execução







*Publicada originalmente em 24/10/2014 



Com base no voto do juiz convocado Paulo Maurício Ribeiro Pires, a 8ª Turma do TRT de Minas determinou que o pai da sócia de uma empresa de montagens industriais e serviços responda pela execução movida por um ex-empregado. É que ficou comprovado que ele integra a sociedade de forma oculta, em nítida fraude contra credores.

O juiz de 1º Grau havia indeferido o pedido de inclusão do pai da sócia, ao fundamento de que o nome dele não consta do quadro societário da executada e não foi incluído no polo passivo da demanda na fase de conhecimento. No entanto, o ex-empregado recorreu e conseguiu modificar a decisão. O exame das provas pelo relator revelou que o pai sempre esteve por trás do negócio e era ele quem conduzia o empreendimento, apesar de seu nome não aparecer na sociedade.

O primeiro aspecto que chamou a atenção do juiz convocado foi o fato de a filha, sócia majoritária da sociedade, contar com apenas 18 anos quando a ação foi ajuizada. O outro sócio era tio dela e faleceu em 2010. Além disso, o julgador notou que o pai da sócia foi apresentado na defesa como representante legal da empregadora. E mais: uma certidão mencionou o nome do pai como sócio da executada e ele também constou do contrato de prestação de serviços firmado entre a reclamada e outra empresa.

Diante desse contexto, o magistrado não teve dúvidas em reconhecer a fraude contra credores, dando provimento ao recurso para determinar que a execução corra também contra o sócio oculto identificado. O relator lembrou que a verba trabalhista possui caráter alimentar, exigindo celeridade no cumprimento da execução. Principalmente no caso analisado, em que a execução se iniciou em janeiro de 2012 e tem sido evitada a todo custo pelos executados.( 0002004-26.2011.5.03.0063 AP )
Fonte: TRT3

Julgamento de ADIs pelo Supremo promove centralização federativa







Não é novidade para ninguém que a federação brasileira se revela altamente centralizada, chegando às raias do federalismo meramente nominal. De um lado, isso se deve à engenharia constitucional no tocante à distribuição de competências (vide artigos 21 a 24 da Constituição de 1988) e, de outro, à contundente atuação do Superior Tribunal Federal ao exercer o controle de constitucionalidade de lei ou ato federal e estadual, especialmente o controle concentrado[1].

É o que mostram duas pesquisas realizadas em grupos diferentes e sem prévio contato, sendo uma elaborada por professores da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e outra por docentes da Universidade de Brasília (UnB).

No estudo de Tomio e Robl Filho[2] são levantadas algumas hipóteses para se verificar se o STF tem ou não poder de veto no processo decisório legislativo.

O propósito é justamente verificar se o STF tem uma tendência maior a declarar inconstitucional uma norma emitida pela União ou pelos Estados. Isso influi diretamente na criação normativa determinada pela organização de competências no Brasil.

No levantamento realizado no período entre 1988 e 2012, Tomio e Robl Filho detectaram uma maior incidência no número de leis estaduais sujeitas ao controle por via de ADI do que leis federais. De um total de 4.751 ações desta natureza em 24 anos, 2.991 foram relativas a alguma lei ou ato normativo produzido pelos Estados, o que corresponde a 63% de todas as ações[3].

Os governadores são os legitimados que mais propõem ADIs contra leis estaduais (664), seguidos de associações (504) e o procurador-geral da República - PGR (398). São números bem diferentes e inferiores em comparação à propositura de tais ações cujo objeto sejam as leis federais, respectivamente 28, 331 e 117.

Além do número de ADIs propostas, verifica-se que 36% das que questionam a constitucionalidade no processo decisório estadual foram julgadas a favor do requerente, sendo que 23% foram totalmente procedentes. É um número mais que três vezes maior que os 11% de decisões favoráveis ao requerente em ADIs cujo objeto era uma lei federal.

Em comparação aos legitimados, os governadores, além de serem os que mais propõem ações, são os que têm a maior percentagem de sucesso (34%) e “utilizam, principalmente, como fundamentação constitucional às ADIs os artigos da CF 88 que tratam da distribuição de competências legislativas: artigo 61, parágrafo 1º, competências privativas do Executivo; artigo 22, competências privativas da União”[4]. Esse percentual é seguido proximamente pelo Procurador-Geral da República (30%), pelas Assembleias Legislativas e pela OAB (22%). 

Tais dados podem levar a uma prévia conclusão: os governadores utilizam a ADI como instrumento de derrubar leis aprovadas pelas Assembleias Legislativas de seus Estados – provavelmente pela ausência de apoio político ou da maioria da Casa ser de oposição ao governo – e também para impedir determinadas normas emitidas por outras unidades federativas.

Em razão disso, a propositura dessas ADIs pelos governadores é uma forma de interferir por meios processuais naquilo que deveria ser um debate político, seja entre Casa Legislativa e Governo Estadual, seja entre estados que fazem leis para seu benefício e que algumas vezes podem gerar efeitos negativos em outros (umas das razões que leva à chamada guerra fiscal). Isso pode ser reforçado pelo alto número de procedências de tais ações propostas pelas Assembleias, que podem usar o meio processual também como forma derrubar decisões políticas dos governadores oposicionistas.

Além do STF ter o poder de legislador negativo, pelo que os dados apresentam, há uma significativa interferência no processo legiferante estadual (ainda que em momento posterior), devido à percentagem de ações que são decididas a favor do requerente.

A propositura das ADIs com tal finalidade é mais uma forma institucional de alimentar a judicialização da política, uma vez que transfere para o STF um encargo de dar a última palavra sobre uma decisão de cunho político. É claramente uma forma do uso de um importante instrumento de estabilização constitucional – e diga-se, essencial a qualquer Estado de Direito – com finalidades que não sejam apenas de contestar sua constitucionalidade, mas sim de vencer pela via do direito uma batalha já perdida na política.

Alexandre Araújo Costa e Juliano Zaiden Benvindo, autores de outra pesquisa com objetivo semelhante[5], possuem uma posição bem realista a respeito do interesse de algum legitimado mover uma ADI: “este sistema somente pode ser movido quando há um interesse concreto dos agentes legitimados para invocar essa forma de controle. Mover uma ADI é uma opção política, e não uma necessidade lógico-jurídica.”[6].

Devido à organização federativa peculiar do Brasil, o uso da ADI para tais fins pelos governadores aumenta a dependência que os Estados têm da União, uma vez que, por de ser um órgão do judiciário nacional a dar a última palavra sobre uma lei estadual, o grau de autonomia diminui drasticamente.

Certamente essa situação acaba contribuindo para reforçar a inter-relação de dependência jurídica, política e econômica dos Estados-Membros. Esse problema é, ao mesmo tempo, uma das grandes consequências centralizadoras e uma causa centralizadora: distribuição desigual das competências administrativas/legislativas, além do caráter exclusivo/privativo da União na maioria delas.

Nesse contexto, as pesquisas deixam claro que a ADI foi largamente usada para fins de reafirmar a centralização causada pela distribuição das competências. Ao intervir como ator de veto nos processos legislativos com grande participação diretamente no âmbito estadual, o Supremo Tribunal se torna fiador da concentração dos poderes nas mãos do Governo Central.

[1]Tratei do tema de maneira mais profunda no seguinte artigo, escrito em co-autoria com o doutorando Leonam Baesso Liziero:MARRAFON, Marco Aurélio. LIZIERO, Leonam Baesso da Silva. Competencias constitucionais da Uniãoo e Supremo Tribunal Federal: fiadores da centralização no federalismo brasileiro. In: Octavio Campos Fischer; Scheila Barbosa dos Santos. (Org.). Federalismo fiscal e democracia. 1ed.Curitiba: Instituto Memória, 2014, v. , p. 26-47.
[2]TOMIO, Fabricio Ricardo de Limas; ROBL FILHO, Ilton Norberto. Empirical Legal Research: Teoria e Metodologia para a Abordagem do Processo Decisório de Controle de Constitucionalidade no STF. In: SIQUEIRA, Gustavo Silveira; VESTENA, Carolina Alves. Direito e Experiências Jurídicas.Vol.2: Debates Práticos. Belo Horizonte: Arraes, 2013, pp. 96-117.
[3]Ibidem, p. 109.
[4]TOMIO, Fabricio Ricardo de Limas; ROBL FILHO, Ilton Norberto. Empirical... Op. cit, p. 114.
[5] COSTA, Alexandre Araújo; BENVINDO, Juliano Zaiden,(orgs.). A Quem Interessa o Controle Concentrado de Constitucionalidade? O Descompasso entre Teoria e Prática na Defesa dos Direitos Fundamentais. Disponível neste link (Relatório) e neste link (Gráficos). Acesso em setembro de 2014.
[6]Ibidem, p. 18


Marco Aurélio Marrafon é presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).



Revista Consultor Jurídico, 27 de janeiro de 2015, 21h11

Desconsideração de pessoa jurídica com base no Código Civil exige prova de abuso



A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – que reúne as duas turmas de julgamento especializadas em direito privado – superou a divergência que havia na corte a respeito dos requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica e definiu que esse instituto, quando sua aplicação decorre do artigo 50 do Código Civil, exige a comprovação de desvio de finalidade da empresa ou confusão patrimonial entre sociedade e sócios.

Para o colegiado, o simples encerramento irregular das atividades – quando a empresa é fechada sem baixa na Junta Comercial ou deixando dívidas na praça – não é suficiente para autorizar a desconsideração e o redirecionamento da execução contra o patrimônio pessoal dos sócios.

A decisão foi tomada no julgamento de embargos de divergência opostos pela Comércio de Carnes Vale Verde Ltda. e seus sócios contra acórdão da Terceira Turma do STJ que determinou a desconsideração da personalidade jurídica da empresa em execução movida pela massa falida do Frigorífico Rost S⁄A.

De acordo com a relatora do caso na Segunda Seção, ministra Isabel Gallotti, a desconsideração só é admissível em situações especiais, quando verificado o abuso da pessoa jurídica, seja por excesso de mandato, desvio de finalidade da empresa ou confusão patrimonial entre a sociedade e os sócios.

Sem má-fé

No curso da execução, foi requerida a despersonalização da empresa devedora para que os sócios respondessem pelas dívidas com seus bens particulares. O juiz determinou a medida, tendo em vista que a devedora havia encerrado suas atividades de forma irregular. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), porém, reverteu a decisão.

Para o TJSC, "o fato de a sociedade empresária ter encerrado suas atividades de forma irregular não é, por si só, indicativo de que tenha havido fraude ou má-fé na condução dos negócios". A ausência de bens suficientes para a satisfação das dívidas, segundo o tribunal estadual, poderia ser motivo para a falência, mas não para a desconsideração da personalidade jurídica.

A credora recorreu ao STJ, onde o relator, ministro Massami Uyeda (hoje aposentado), restabeleceu a decisão de primeiro grau ao fundamento de que a dissolução irregular é motivo bastante para a desconsideração (REsp 1.306.553). O entendimento do ministro, amparado em precedentes, foi confirmado pela Terceira Turma.

Requisitos necessários

No entanto, a questão não era pacífica no STJ. No julgamento do REsp 1.098.712, de relatoria do ministro Aldir Passarinho Junior (também aposentado), a Quarta Turma decidiu que, embora não seja necessária ação autônoma para a desconsideração, seu deferimento exige “a constatação de desvio da finalidade empresarial ou confusão patrimonial entre a sociedade e seus sócios”.

Naquele julgamento, os ministros da Quarta Turma reformaram a decisão que havia desconsiderado a personalidade jurídica da empresa devedora, entendendo que o tribunal estadual – no caso, o do Rio Grande do Sul – não avançara no exame dos requisitos necessários à medida, mas apenas apontara a ocorrência de dissolução irregular.

Com base nesse acórdão da Quarta Turma, a Comércio de Carnes Vale Verde Ltda. e seus sócios entraram com os embargos de divergência para que a Segunda Seção resolvesse a controvérsia.

Regra de exceção

Em seu voto, a ministra Isabel Gallotti afirmou que a criação teórica da pessoa jurídica serviu para o desenvolvimento da atividade econômica ao permitir que o risco do empreendedor ficasse limitado ao patrimônio destacado para esse fim.

Segundo ela, abusos no uso da empresa justificaram, em lenta evolução jurisprudencial, posteriormente incorporada ao direito positivo brasileiro, a tipificação de hipóteses em que se autoriza o afastamento da personalidade jurídica para atingir o patrimônio de sócios que dela se prevaleceram dolosamente para finalidades ilícitas.

“Tratando-se de regra de exceção, de restrição ao princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a interpretação que melhor se coaduna com o artigo 50 do Código Civil é a que relega sua aplicação a casos extremos, em que a pessoa jurídica tenha sido instrumento para fins fraudulentos, configurado mediante o desvio da finalidade institucional ou a confusão patrimonial”, disse a relatora.

Microssistemas

Isabel Gallotti destacou que a desconsideração da personalidade jurídica está prevista não apenas no artigo 50 do Código Civil de 2002, mas também no artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, no artigo 34 da Lei 12.529/11 (que organizou o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência) e no artigo 4º da Lei 9.605/98 (que trata das sanções em caso de agressão ao meio ambiente). Também o Código Tributário Nacional, apontou a ministra, admite que a dívida fiscal da empresa seja cobrada diretamente dos sócios (artigo 134, VII).

Segundo a relatora, cada uma dessas leis estabelece requisitos específicos para que a cobrança possa ser redirecionada contra o patrimônio pessoal dos sócios, razão pela qual os pressupostos da desconsideração devem ser analisados à luz do microssistema jurídico-legislativo aplicável a cada caso.

No campo tributário, por exemplo, a Súmula 435 do STJ dispõe que “presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio gerente”.

Teoria maior

“Há, portanto, hipóteses em que os requisitos exigidos para a aplicação do instituto serão distintos, mais ou menos amplos, mais ou menos restritos, mais ou menos específicos”, disse a ministra. Quanto à execução movida pela massa falida do Frigorífico Rost, Gallotti observou que se baseia em cheques emitidos pela devedora, sem haver relação de consumo ou qualquer outra que não seja regida apenas pelo Código Civil.

De acordo com a relatora, o STJ já fixou em vários precedentes o entendimento de que a teoria da desconsideração adotada pelo Código Civil foi a chamada “teoria maior”, que exige a presença de dolo das pessoas que usam a personalidade jurídica da empresa para acobertar atos ilícitos prejudiciais aos credores. “É a intenção ilícita e fraudulenta, portanto, que autoriza, nos termos da teoria adotada pelo Código Civil, a aplicação do instituto”, disse.

“Não se quer dizer com isso que o encerramento da sociedade jamais será causa de desconsideração de sua personalidade, mas que somente o será quando sua dissolução ou inatividade irregulares tenham o fim de fraudar a lei, com o desvirtuamento da finalidade institucional ou confusão patrimonial”, concluiu a ministra.Leia aqui a íntegra do voto da relatora.
Fonte: STJ

Direito à meação em união estável só existe para bens adquiridos após a Lei 9.278




Em uniões estáveis iniciadas antes da Lei 9.278/96, mas dissolvidas já na sua vigência, a presunção do esforço comum – e, portanto, o direito à meação – limita-se aos bens adquiridos onerosamente após a entrada em vigor da lei.

Esse foi o entendimento majoritário da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que decidiu questão controvertida nas duas turmas que compõem o colegiado ao julgar recurso sobre partilha de bens em união estável iniciada em 1985 e dissolvida em 1997.

O recorrente se insurgiu contra acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) que reconheceu o direito à meação do patrimônio reunido pelos companheiros nos moldes da Lei 9.278, incluídos todos os bens, inclusive os que foram adquiridos antes da edição da lei. O TJMG considerou a presunção legal do esforço comum.

Segundo o recorrente, a decisão do tribunal mineiro desrespeitou o direito adquirido e o ato jurídico perfeito por ter atingido os bens anteriores à lei, que seriam regidos por outra legislação.

A ministra Isabel Gallotti, cujo voto foi vencedor no colegiado, afirmou que se houve ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, isso não decorreu do texto da Lei 9.278, mas da interpretação do TJMG acerca dos conceitos legais de direito adquirido e de ato jurídico perfeito – presentes no artigo 6º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) –, “ensejadora da aplicação de lei nova (Lei 9.278) à situação jurídica já constituída quando de sua edição”.

Sociedade de fato

A ministra explicou que até a entrada em vigor da Constituição de 1988, as relações patrimoniais entre pessoas não casadas eram regidas por “regras do direito civil estranhas ao direito de família”.

De acordo com Gallotti, o entendimento jurisprudencial sobre a matéria estava consolidado na Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal (STF). O dispositivo diz que, comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.

A ministra lembrou que a partilha do patrimônio se dava não como reconhecimento de direito proveniente da convivência familiar, mas de contrato informal de sociedade civil, cujos frutos eram resultado de contribuição direta dos conviventes por meio de trabalho ou dinheiro.

Segundo Gallotti, com a Constituição de 1988, os litígios envolvendo as relações entre os conviventes passaram a ser da competência das varas de família.

Evolução

Ao traçar um histórico evolutivo das leis, a ministra reconheceu que antes de ser publicada a Lei 9.278, não se cogitava presunção legal de esforço comum para efeito de partilha igualitária de patrimônio entre os conviventes.

A partilha de bens ao término da união estável dava-se “mediante a comprovação e na proporção respectiva do esforço de cada companheiro para a formação do patrimônio amealhado durante a convivência”, afirmou.

Segundo Gallotti, com a edição da lei, foi estabelecida a presunção legal relativa de comunhão dos bens adquiridos a título oneroso durante a união estável.

Aquisição anterior

Entretanto, essa presunção não existe “se a aquisição se der com o produto de bens adquiridos anteriormente ao início da união”, acrescentou a ministra.

Ela explicou que, com a edição da Lei 9.278, “os bens a partir de então adquiridos por pessoas em união estável passaram a pertencer a ambos em meação, salvo se houvesse estipulação em sentido contrário ou se a aquisição patrimonial decorresse do produto de bens anteriores ao início da união”.

Segundo Gallotti, a partilha dos bens adquiridos antes da lei é disciplinada pelo ordenamento jurídico vigente quando se deu a aquisição, ou seja, com base na Súmula 380 do STF.

A ministra afirmou que a aquisição da propriedade acontece no momento em que se aperfeiçoam os requisitos legais para tanto, e por isso sua titularidade “não pode ser alterada por lei posterior, em prejuízo do direito adquirido e do ato jurídico perfeito”, conforme o artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição e o artigo 6º da LICC.

Expropriação

Isabel Gallotti disse que a partilha de bens, seja em razão do término do relacionamento em vida, seja em decorrência de morte do companheiro ou cônjuge, “deve observar o regime de bens e o ordenamento jurídico vigente ao tempo da aquisição de cada bem a partilhar”.

De acordo com a ministra, a aplicação da lei vigente ao término do relacionamento a todo o período de união implicaria “expropriação do patrimônio adquirido segundo a disciplina da lei anterior, em manifesta ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, além de causar insegurança jurídica, podendo atingir até mesmo terceiros”.

Por isso, a Seção determinou que a presunção do esforço comum e do direito à meação limitam-se aos bens adquiridos onerosamente após a vigência da Lei 9.278.

Quanto ao período anterior, “a partilha deverá ser norteada pela súmula do STF, mas, sobretudo, pela jurisprudência deste tribunal, que admite também como esforço indireto todas as formas de colaboração dos companheiros, mas que não assegura direito à partilha de 50%, salvo se assim for decidido pelo juízo de acordo com a apreciação do esforço direto e indireto de cada companheiro”, afirmou Gallotti.

O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.

Fonte: STJ

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